O MITO DO GATO PRETO
Diziam os mais velhos que quem cruzasse no seu caminho com gato preto, coisa ruim acontecia com ele onde quer que fosse viver. Isto sabia eu desde os meus tempos de menino em que ouvíamos contar estórias na varanda dos Correios, do lado de cá da praça central de Assomada.
Diziam os mais velhos que quem cruzasse no seu caminho com gato preto, coisa ruim acontecia com ele onde quer que fosse viver. Isto sabia eu desde os meus tempos de menino em que ouvíamos contar estórias na varanda dos Correios, do lado de cá da praça central de Assomada.
Lembro-me perfeitamente do nome da mulher, Nha Mina colola, que virou vesga por se ter cruzado a desoras com um gato preto, mesmo ao pé da sua casa. Ela vendia ciré no mercado, uma mistura parecida com café torrado moído, que as pessoas colocavam entre o lábio inferior e a gengiva.
Nha Maria Tita de Pedra Barro, a lavadeira da nossa casa, usava este produto. Quando vinha lavar a roupa, o quintal cimentado, em redor da tina, ficava manchado pelo cuspo pesado como se fosse bosta de bicho que se alimentava de lantuna. A minha mãe que também se chamava Maria, ficava furiosa, ralhava-se com ela por causa do quintal emporcalhado, mas a outra respondia sempre com aquela calamaria na voz: Nãão, Doona Mariiia, eu limpo tudinho, fica bonitinho como dantes, mesmo antes do Sr. Alberto chegar. Aí estava a patroa a replicar: mulher, não é isso que eu estou a dizer. Porque é que não põe um saco no chão ou um caixotinho de papelão com terra e deita a porcaria do cuspo, essa coisa feia, feita kokoróta de frigideira queimada, guardada na boca não sei há quanto tempo. Olha se isso continuar, não precisa de vir mais. Arranjo outra pessoa. Eram advertências enérgicas ante a mulher que não parava de bazar a mão na surradeira.
Nha Maria Tita de Pedra Barro, a lavadeira da nossa casa, usava este produto. Quando vinha lavar a roupa, o quintal cimentado, em redor da tina, ficava manchado pelo cuspo pesado como se fosse bosta de bicho que se alimentava de lantuna. A minha mãe que também se chamava Maria, ficava furiosa, ralhava-se com ela por causa do quintal emporcalhado, mas a outra respondia sempre com aquela calamaria na voz: Nãão, Doona Mariiia, eu limpo tudinho, fica bonitinho como dantes, mesmo antes do Sr. Alberto chegar. Aí estava a patroa a replicar: mulher, não é isso que eu estou a dizer. Porque é que não põe um saco no chão ou um caixotinho de papelão com terra e deita a porcaria do cuspo, essa coisa feia, feita kokoróta de frigideira queimada, guardada na boca não sei há quanto tempo. Olha se isso continuar, não precisa de vir mais. Arranjo outra pessoa. Eram advertências enérgicas ante a mulher que não parava de bazar a mão na surradeira.
Ela, endireitando as costas lentamente, retomou a palavra: Dona Maria ciré virou vício para mim. Antes, não era. Pu-lo como resguardo. Olha, Dona Maria, já me encontrei com vários gatos pretos à noite no caminho de casa, graças a Deus, nunca aconteceu-me nada. Está tudo cortado. Sabe, o meu é rezado. Tenho uma oração que me foi confiada pelo meu padrinho, antigo sacristão que acompanhava sempre o senhor padre Rego, nas rezas. Ele tinha desses livros antigos com boas orações. Olha o que ele me ensinou: Grandi Santu pai dos padicidus, recomandai tudu anjos da guarda para mi guardai, acompanhai di dia di noiti y tudu hora qui Jesus padiceu na cruz, para esta coitada di Deus qui busca seu pão di cada dia em casa di gente. Guardai-mi o caminhu di casa saindu, vindu, entrandu deitandu na companhia de Santu nomi di São José guardador di seu rubanhu longi di fisgu di animal runhu y outrus animal fingindu amigu du homem. Ponha no meu caminhu sempri bons anju e bons santus prutetor das almas crente em Deus. Ponha no meu destinu di bai y di bem a pena das asa di pomba brancu do espíritu santu, em três pessoa di santíssimu trindadi. Amem.
Dona Maria, quando rezo, eu peço para o bem-estar de todo o mundo. E você é a minha patroa. Olha, pode-me dar uma moeda de dois tostões que vou no pilorinho faxi (depressa). Não vai durar muito. A minha mãe que conhecia bem as pedras do seu fogão e que curtia muito as peripécias da lavadeira, tirou da algibeira do avental uma moeda e alongou à mulher que largou nem codorniz espantado, vendo sequer direito a moeda que segurava entre os dedos. Vái, e mata todos os gatos pretos, mas não me emporcalhes o quintal, a frase da patroa teria ficado, talvez, pendurado nos gestos arrebatados da lavadeira sem mesmo chegar aos seus ouvidos. (Kb)
2 comentários:
Este post fez-me lembrar o Manél Broco, lá de Ribeirinha de Jorge, Ribeira da Torre.
Era das poucas pessoas que tava mascá ciré, que eu conhecia. Gostava de ir à casa da minha avó e quando lá chegava, minha avô advertia-o logo: "cuidód qu'ess boca que bo ta tem cima polpa de galinha tchóca" (isto é, polpa de galinha tchóca ca ta pará, el te estód sempre ta descarregá. É claro que o Manel não ouvia aquilo porque era broco (surdo)
hei-de escrever um post sobre essa figura
Abraço
Obrigado pela visita meu caro.
Sim acho bem que se fale sobre as figuras lendárias e as peripécias das nossas ribeiras que muito nos agrada dar a conhecer aos outros. Santo Antão deve ter estórias e mais lendas,"as vidas vividas" com um valor simbólico e pedagógico interessante. Eu encorajo-te a escrever. É uma forma de reivindicares o teu (meu) Sinta10.
Um abraço Kb
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