Ildo a Voz que Ficou

A ILDOLOROSA VOZ DE UM ÍDOLO


O Conjunto Voz de Cabo Verde foi sem dúvidas o grupo musical que ajudou os músicos da minha geração a elucidarem-se de qual era o porte dos instrumentos electrónicos na potenciação e na apresentação do nosso folclore, demonstrando-lhes como tirar o melhor partido deles, como aproveitar essa sonoridade no empolgamento da nossa música, mas também como avantajar e modernizar os seus arranjos e a orquestração, atitude inovadora que deu um novo enfoque à voz intérprete, centrando e reedificando-a como uma das peças primordiais em todo o processo executório convindo melhor à audição.

Foi graças à contínua aprimoração na feitura dos instrumentos musicais, potenciando e requintando a sua sonoridade, é que os músicos e a música cabo-verdiana se elevaram para níveis superiores de grandeza, bom grado à aposta na sua aquisição, à facilidade de adaptação, à habilidade e o empenho que os mais talentosos cedo puseram a favor da modernização do nosso legado melódico, tendo os jovens adeptos da música, da nossa música, dentro e fora do país, abraçado a nobre razão de contribuir para elevação do nosso património musical e cultural.

Eu estava no grupo musical os Robins, com o Kiki Lima, o Tony Óscar, o Toi Cabicinha, o Kotchí e o pequeno Tei Baterista, enquanto o Zezé, meu irmão, o Xindo, o Fortinho, o Duia, o Luizinho Lobo estavam no grupo musical os Tubarões. Na altura o meu irmão avisou-me que tinham acabado de fundar esse conjunto com instrumentos novos adquiridos na Casa Serbam com o aval do Sr. Cristiano Valcorba. Tempos depois, na Praia, de férias, assisti os ensaios do grupo, em Ponta Belém, casa do Toka. O Zezé e o Fortinho Bettencourt instaram-me em participar com eles numa actuação no salão da Rádio Clube da Praia, onde havia apenas jovens de Riba Praia. Na altura, pop, cúmbia, samba, as canções românticas estavam em cima. O Xindo, o Luís Lobo, ambos, gozavam de muita simpatia na Praia. Nada me convencera em ficar com eles. Regressei mesmo a São Vicente ficando os Tubarões de fora. Mais tarde, refundado o grupo com a entrada de novas caras, com muito sucesso conseguiu a partir da tradição criar uma onda sonora e vigorosa na qual a nossa memoração ainda sulca na quilha angustiante da deserção (precoce) de uma das mais cotadas formações musicais do nosso tempo. Os Tubarões, o Abel Djassy e os Bulimundo foram uma grande escola, assim como todas as conhecidas bandas musicais que marcaram a história da nossa música a começar com a Voz de Cabo Verde.

Conheci o Ildo Lobo aquando da sua estada em São Vicente junto ao grupo Nova Aurora activado pelo compositor Manuel d’ Novas, tendo-se estreitado a nossa relação amistosa quando vim definitivamente para a Praia em 1979. Lembro-me do dia em que fui levado à casa do Jaime, por quem já não me lembro, tocava-se o violão e ali mostrei a composição minha Nha Terra Aonte y Aoje, morna. Momentos depois, um rapaz alto, elegante e muito brincalhão, chegou, e, era o Ildo. Fizemo-nos logo amigos. Saímos todos e fomos direito à tasca no Beco do Cesáreo, entre conversa animada e uns grogues, combinámos encontrar no dia do ensaio do grupo para os ver trabalhar. Fui e gostei da forma como eles trabalhavam e lidavam com a nossa música e apreciei muito o avigoramento que o cantor dava a cada verso dentro da melodia, garanti e passei a ele uma cassete com as composições Tabanka di Txáda Grandi, Nha Terra Aonte y Aoje e Somada e as respectivas letras. «Vais gostar. Convido-te a ver o trabalho» deixou-me estas palavras e assim aconteceu.

Os Tubarões estavam em pleno nessa altura sobretudo quando gravaram as minhas músicas. Impressionou-me mais e a fundo o repertório do – Tema para Dois – um trabalho discográfico bem conseguido, que tive a honra de apreciar antes da partida do grupo para a gravação. «Kaká se não gostares seja franco connosco e nós corrigimos» comentara o Ildo. No final foi a vez do Zeca Couto a instruir-me sobre os tons e a musicalidade introduzida nessa obra. Este último não tinha a sornice que aparenta ter hoje. O Zeca Couto era a bobine do grupo. Ele é muito criativo e domina bem o LaMiRé. A respeito dos discos – Tema para Dois – sempre disse isso. Descodificá-lo, levaria cinquenta anos e ando convicto de que ainda não temos gente em Cabo Verde para entrar a fundo neste disco. Recentemente numa digressão à Ilha Brava, à conversa com o meu malogrado irmão Ildo, lembrava-me ele: «Kaká, faltam ainda 30 longos anos», e lhe respondi a sorrir: «bróda, nós não estaremos cá para assistir. Assim são as grandes obras. Muitas delas obtiveram garantias póstumas».

Tanto no Fogo, na Brava e ultimamente nos dois espectáculos na Assembleia Nacional, Simpósio Amílcar Cabral e Solidariedade com Cabo-verdianos em São Tomé, uma coisa, sempre registei, detrás das lentes. O Ildo boiava em lágrimas. Para mim jamais ele se desertou dos Tubarões, e ao pisar o palco, parece que esse fantasma vivia por detrás dele, facto que, quanto a mim, se traduzia numa mágoa sem cura – o final precoce do grupo a que pertencia – e essa confissão sincera revelava-se tanto no empenho que punha no trabalho, como nas exigências que sacava dos músicos que o guarneciam durante uma actuação. «Esta morna diz muito para mim» disse-me em São Filipe, quando eu afinava a morna Nha Terra Aonte e Aoje com o grupo mindelense, Serenata. Este “TUBARÃO ÍDOLO” deixará jamais de habitar a baía dos nossos corações onde a sua voz se perpetua.

O Ildo Lobo era para mim um insubmisso humilde, um jovial que não brincava com as coisas sérias, um rigoroso defensor da qualidade do nosso folclore «interpreto músicas que têm conteúdo» dizia quando confrontado com o que ele chamava “pimba crioulo”, mas hão de me entender se disser que, nas últimas gravações do cantor, nota-se que passou a haver mais uma Ildolorosa Voz do que aquela que forjou o ÌDOLO, sem contudo querer dizer que as suas interpretações deixaram de encantar. Apesar de tudo, o que para mim interessa e o que convém ressaltar, é que ele soube honrar o princípio e o fim da sua importante carreira, e o facto de ele ter registado e de ter deixado, na condição sabida, de ouvir a sua própria voz, é um acto de audácia pertencente a espíritos evoluídos.

És também um dos tributários das minhas melodias, já a consegui, e espero que o tempo me dê essa grande faculdade de cantá-la em tua memória.

Com Sol Lá Dó… fico em Nos Morna. Kaka Barboza



RAPIZIUS

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