TRÁS DI SON: UM SOPRO D'ALMA

TRÁS DI SON: UM SOPRO D’ALMA – Imago em 2 A 4



Gostaria de começar este registo assim: o paizinho – Alberto Barbosa – e a mãezinha – Maria da Graça Barbosa – são a fonte fascinante e conformadora do fluxo fecundo em que se assenta a nossa impagável e extensa irmandade. Robusto, senti-me, ao ouvir o Djinho – (Tui 10 in private) – em directo na rádio com uma afável participante de 82 anos de idade, a nossa mãe, nas vésperas do lançamento do seu álbum. «Djinho, sabes que gosto da morna e não música “di tolera”». «Sim, mãe, vai uma morna» Um “soft” riso do “kodé”, despretensioso, escapuliu na linha do tempo estrelando o firmamento das nossas alegrias.

Para todos vocês, o Djinho é, naturalmente, um grande músico. Mas, em mim, ele é (t)alento.

Tudo começou em Assomada quando o menino da escola primária cedo abraçou a curva do violão para o bem deste hoje, altivo e saliente na pauta, onde “Trás di Son” se perpetua. Eram Beatles, Otis Reding, Roberto Carlos, Adamo, entre outros, os poucos discos que não paravam de girar no precário gira-discos no nosso quartinho do terraço. Mais tarde viraram todos eles músicos de renome, os pioneiros de ontem, Djinho, Kim, Albertino, Xando, Jorge, Antero, Totinho, meninos atinados que marcaram a aventura Abel Djassi enquanto escola fecunda de aprendizagem e de camaradagem. O tempo e a distância que hoje os separa foram vencidos com esta bela produção musical. Mas foi a estada no Brasil, em formação universitária, a confirmar em Djinho, ainda que fresco, os parâmetros que haviam de impulsioná-lo na construção, na conformação e na consolidação de uma linha melódica própria que faz dele um angélico compositor e deste álbum uma angélica obra de contornos modernistas no actual panorama musical verdiano.

O Ângelo Mano da Música, no silêncio das madrugadas praianas, vinha tecendo as teias sonoras de ligação do tradicional à modernidade, tema constante das nossas conversas – o mister do salto qualitativo pelo alargamento dos limites da nossa música – quando nos víamos confrontados com o teor e a performance melódica das diferentes obras discográficas produzidas dentro e fora do país. Este claro Sopro d’Alma dá-me múltiplas razões para me sentir deveras feliz não só pelo facto de temas meus e a minha própria voz nele ficou ligado, mas sobretudo por apurar a exemplificação em como a partilha do afecto se conjuga com a objectividade, por conferir que esta forte aposta traduz o espírito das ideias por que nos vimos batendo, enfim, por consagrar temas fortes e formas de participação inéditos, levando o “Trás di Son” a converter-se numa magnífica e ousada onda de criatividade.

“Contido” no dia da estreia, fiquei, mas a ponderar a folhagem de palavras que devia corporizar o Imago em A4 em sinal de louvor à obra. Vão, pois, estas reflexões retidas no livro – Claros d’Alma & Solos – em revisão, considerando a relevante meta atingida com este salto. Cito: «Foi graças à contínua aprimoração na feitura dos instrumentos musicais, potenciando e requintando a sua sonoridade é que os músicos e a música cabo-verdiana se elevaram para níveis superiores de grandeza, bom grado a aposta na sua aquisição, à facilidade de adaptação, à habilidade e ao empenho que os mais talentosos cedo puseram a favor da modernização do nosso legado melódico, tendo os jovens adeptos da música, da nossa música, dentro e fora do país, abraçado a nobre razão de contribuir para a elevação do nosso património musical e cultural.

O despertar das consciências para aquilo que era autenticamente nosso fez surgir um bom leque de actores em todas as vertentes artísticas, trazendo, por vezes, propostas inovadoras baseadas no aproveitamento e no emprego de novos materiais, novas técnicas e novos sons. Fez, também, renascer o empenho individual de muitos na aquisição dos equipamentos electrónicos de som o que ajudou na estilização da nossa música, na conquista de maior sonoridade e mais beleza, na obtenção de novos arranjos, conquistas estas que ditaram e dilataram o empoderamento destes e da nossa música e uma notável qualificação.

Mas nem sempre foi conseguido o desejado por alguns deles (músicos) que, entusiasmados pelo fragor dos ritmos mexidos, deixaram-se influenciar demasiadamente, ficando um pouco arriscado e defeituoso o seu trabalho. A imperícia na procura de melhores soluções, quiçá, a rejeição da opinião dos mais experientes, acrescido da falta que faz um centro oficial de formação musical, levara a que muita coisa ficasse mal concebida, logo, esquecida, já que uma boa obra é resultado de meditação, de indagação, de dedicação enfim de muito trabalho.

A música, quer dizer a boa música, para ser concebida de ouvido e de forma espontânea sem que a pessoa a tenha estudado e compreender as suas leis, a valência dos ritmos, a noção do compasso e a musculação dos versos dentro da frase melódica não é de modo algum tarefa fácil. O músico tem de saber gerir e jogar com tudo isso, com as emoções, com o instrumento, com a criatividade, etc., enfim, ele deve possuir bons conhecimentos e ter cuidados especiais. Não chega a boa vontade. Criar é mais do que imaginar coisas. É fazer carburar com sucesso os fundamentos de uma ideia original ou inovadora. Partir do conhecimento da realidade, aproveitar as vantagens, aplicá-las com justeza e parcimónia, enriquecer sem complexos o tecido sonoro que os nossos antecessores, Eugénio Tavares, Jota Monte, B. Leza, Olavo Bilak, Bala, Abílio Duarte entre outros, nos legaram, é tarefa a cumprir-se com distinção, sentido crítico, com postura e com dignidade.

Por outro lado enquanto não houver a tal instituição oficial para o ensino das artes e da música, um homem da música para o ser de facto, deve é saber aproveitar e bem os ditames da sua sensibilidade artística, dando asas à sua imaginação e deixar que seja presenteado com o belo, com o suave, com o harmonioso, com sopro fluídico universal que sobre si desce e o envolve naqueles momentos ímpares e invulgares da criação. Ser compositor é ser um bom registador de factos e um bom contador de histórias. É saber rebuscar na riqueza das tradições as pedras fundamentais e na sua base espiritual o essencial da construção do seu paraíso onde o maravilhoso, as fantasias, o romantismo, seja o incenso para o seu Funanbá. É ser um melodista lírico, um fantasista, um sonhador, um amante do amor por excelência, um boémio, um humanista, mas também uma voz crítica, um denunciador do estado de coisas que magoam a sociedade dos homens, intervindo e sugerindo, enaltecendo ou condenando as práticas sociais incorrectas, utilizando para o efeito, a sinceridade e a honestidade das suas expressões ou o sentido de humor carregado de subtilezas criticando de forma veemente e satírica, ironizando os comportamentos, sem contudo deixar-se cair em exageros forjados pelas emoções.

Tudo isso não deve estorvá-lo a ser o dono das suas asas e voar sem se intimidar, mas movendo-se cauteloso e inteligente servindo-se dos factos e dos eventos de forma desabusada adentro dos princípios do respeito e da autenticidade, erigindo estes últimos como bandeira da sua forma de comunicar. Pois, a palavra joga e deve jogar sempre um papel de primordial grandeza dentro e fora da melodia. Quem tem o hábito de escutar, notará, com certeza, que há palavras certas que no corpo de uma melodia move-nos a pele e retesa-nos os cabelos.

Cuidar das palavras, dar-lhes um tratamento adequado é uma acção imprescindível e tão necessária para uma obra assim como é uma boa afinação para as cordas e os acordes num bom violão. E por falar em violão devo salientar que este instrumento, na nossa terra, popularizou a música servindo sempre como parte importante na harmonização de espaços de convívio, na construção de valores e da espiritualidade verdiana.

É raro num compositor ou num poeta cabo-verdiano, o louvor à “terra-madrasta”, o peso da distância, o mar e o céu, a saudade, o paisagístico, os enganos e os desenganos do mundu bénba, não pesarem sobremaneira na pele da sua alma e não funcionarem como vagas fogosas eclodindo nas rochas do seu pensamento. É difícil, as imagens retidas da sua infância e as focagens que as luzes do seu interior lhe não oferecem e lhe não dê o sangue inevitável para entornar na carne dos versos alimentando a boca do seu violão e não jazer na torrente da melodia que brota da sua criação. Um músico é um cultor de sons, um construtor de alento, um plantador do riso, do choro e da esperança na boca soante do seu violão».

Ângelo Barbosa – Djinho – é um exímio plantador de Sopros d’Alma na braveza feminil destas Ilhas, correndo em “Cio” a maratona da transformação do antigo em moderno, sendo “Trás di Son” uma “Tran si Son” de fôlego que o coloca no luzente vértice da constelação dos arquitectos da moderna sonoridade verdiana e … “Tui 10”… «Não fôssemos irmãos de sangue e de cultura era nula a paixão em tentar captar a luz da música que goteja em cada tema desta distinta compilação. Esta obra assume os contornos de uma viagem pelas vagas do som numa vasta operação de libertação de sopros e de imagens que a clave da idade, em feição de tons e vozes, descodificou. “Trás di Son” é um sopro d’alma na linha do tempo, inédito e sedutor, uma tónica a comprovar a eficácia e a força comunicativa da cientificidade, um tom a evidenciar como interligar o tradicional popular e a modernidade presente. “Trás di Son” convida-nos ainda a penetrar num mundo de sons prenhe de ancestralidade, conduzindo-nos ao maravilhoso e ao fantástico que povoam o nosso imaginário com o condão de nos seduzir como crianças a apalpar na variante dos sentidos se o amor é um “código nas margens do rio da vida” ou se o som é um “Sopro d’Alma” a sondar o “Si em Cio” na linha do tempo.

«Djinho, a música que trazias dentro não podia ficar silenciada».

Praia, 11 de Março de 2006

Kaka Barboza



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