A JANELA E O
ROSTO
No Tê Três, segundo esquerdo, á Rua do Poeta, ao pé da
Esplanada o Cometa, mora a janela que dá para o fresco pátio, que não é bem-dotado,
mas agrada. Assentos, canteiros e árvores de adorno fora o planeado. Porém, o
raro verde das acácias rubras contrasta o cinza do empedramento. Não há no
mundo inteiro canteiros onde as pedras floram para as janelas. Só no pátio. Só
ali as pedras florescem e frutificam. O que diariamente fazem os pombos bicando
o chão? E a janela que do alto assiste a paisagem? Era sexta-feira à noite. A aba
da lua já havia aparecido quando a janela se abriu e foi suavemente abordada
pelo trinar dos grilos. Inclinou-se. Demorou até se dar conta de onde ela
estava e do que tinha programado fazer nessa noite de mais um dia a afinar o
texto. Buscava o esboço dos três últimos versos. À esquerda o Dicionário, o
bloco de notas e esferográfica à direita e ao centro a tela do computador. Ao
fixar, instintivamente, os olhos no branco da parede, uma mistura de contrastes
fascinantes desafiou-lhe a descobrir, a explorar, a ir em frente, pouco a pouco
os traços vinham como flashes de uma peça em que ela era o fingidor, o
personagem gentil e ao mesmo tempo autoritário, educado e ao mesmo tempo
impaciente.
Eram duas
horas da madrugada de sábado quando um rosto apareceu na parede do quarto
branco, justamente onde a lâmpada de leitura enfraquece a luz, mas perceptível.
Levou um bocado de tempo a olharem-se. Na verdade era um momento de
cordialidade. Ambos não queriam desapegar do ambiente que criavam. Pareciam rostos
numa varanda à luz de velas, ao fundo a lua e as estrelas como testemunhas, e
abaixo, o panorama do pátio, o trinar de grilos a aprofundar o silêncio, realmente
uma ocasião romântica. Ela sentia-se feliz pelo momento de mais um encontro tão
maravilhoso entre duas vidas reveladoras de sentires, como dois pontos provindos
da mesma fonte. Não quis desapegar-se dali, a menos que o rosto ocultasse por
vontade própria. A essa altura, este já fazia carícias ousadas, enfiando
disfarçadamente a mão pelo vidro abaixo. Provavelmente pelo efeito da magia
daquela noite enluarada ou pelo efeito do escancarar da janela, que não oferecia
nenhuma resistência, apesar de ser o primeiro encontro entre ambos. Sair de lá bruscamente
não era atitude certa, pensou. Continuar, estava a provocar o que não queria
que acontecesse, unirem-se. Encantado, o rosto andou por mais alguns segundos a
procurar os interiores dela. Mas lá havia apenas noite, pirilampos de faróis acesos
a bailar e os grilos a pastorearem estrelas. Receosos, ambos, piscaram o olho. Antes
de se ocultar o rosto franziu a cara, depois, ocultou-se, e, então o lugar
ficou como estava no início e o texto por consumar. A lua tinha transitado para
o lado inverso e a raridade da luz tornava apurpurada a copa das árvores,
enquanto a janela do quarto branco, desalumiada, adormeceu por detrás da
cortina de seda.
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