ENTRE DUAS VIDAS (2)
Era de madrugada.
Exercitava textos no máximo quinhentas palavras, a lembrar o saudoso poeta Mário
Fonseca, quem me espertou para este tipo de texto, estilo de Virgílio Pires, cultor
deste género literário, tido como pai do conto curto caboverdiano. Ao pé de mim a minha
viola – Peregrino - e por detrás do armário a Osga Rosa a cantar no habitual Fá
Maior. Concentrado estava eu a formatar as ideias para o texto - Entre duas
Vidas – quando apareceu a sombra que sempre me acompanha nestes momentos a movimentar-se
na sala: sapato polimento preto, calças escuras, camisa branca manga comprida,
passo longo e lento, num vai vem tranquilo. A figura aparece-me sempre do mesmo
lado. Do lado do canto do olho direito. Não se lhe ouve a voz. Falávamos por instinto,
mas, desta vez, foi desdobramento. Era eu sem ser eu a traçar na tela do
computador os contornos da narrativa. De súbito, tive o texto pela frente que
começava assim: olha, eu e tu somos o mesmo espirito. Usas nome diferente. Tens
tua vida. Eu a minha. Mas interligamo-nos, sempre. O que nos separa é caso menor.
Nas condições em que vivo não me é permitido revelar quem e onde estou. Mas, vivo.
Podes dar-me nome que pretenderes, não levo a mal. Sempre que posso, venho. Por
amizade e afeição. Não te preocupes comigo. Sinto-me bem onde estou. Mas é difícil
o teu viver. Acautela-te. Eu morri há algum tempo. Na altura começavas a abrir
os olhos. Aquela terra fez-te bem. Deu outro rumo à tua vida. As pessoas das
tuas relações eram gente de bem. Os lugares visitados foram benéficos. Tudo
isso ajudou-te muito. Mas, o ambiente onde vives é diferente. Há gente e procedimentos
inúteis. De todo o modo, vive. Vivo em outra vida, sem ser visto. Mas, vivo, convivo,
a cumprir o meu dever de vivo para com os vivos mortos. Sinto que falta óbito aos
vivos a caminho da morte. Gostaria de estar morto para não ver os vivos mortos,
que sei estarem extintos antes de morrerem. Passei o tempo todo a pensar morrer
por eles. Mas, depois de ela acontecer, descobri que viver pelos mortos vivos não
vale, nem após a morte. Não me julgues mal. Morri de coisa grave. Fui ao
médico, estive internado e medicado por sintomas que não conseguiram diagnosticar.
Achou-se que era doença de sono porque não dormia havia meses. De seguida,
comentou-se que podia ser obra de espírito encalhado. Mais tarde, reuniu-se a
junta médica e acabaram por aumentar a dose do sedativo. Tiveram de consultar o
banco de dados, meu ficheiro tinha sumido. O operador confirmou ter registado
tudo. Insistiram, nada. Chamaram o técnico informático para proceder a busca. Minutos
depois, acharam. A descrição aludia que o paciente tinha morrido uma semana atrás,
óbito justificado por insonolência crónica e anemia exacerbada. O confrade foi-se
embora assim como veio. Deixou o texto pronto. Li, conferi e apurei. Eram quinhentas
palavras. Assim foi a madrugada de ontem.
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