BATOM NA ALMOFADA
Com o saco
do violão a tiracolo desci do carro à porta da casa. As lâmpadas de iluminação
pública, da rua, estavam apagadas, apenas luzes interiores dos estabelecimentos
vizinhos iluminavam o largo. Não havia escuro, mas era quase impossível identificar
à primeira vista qualquer pessoa que cruzasse comigo a essa hora da noite. Os
cães que habitam a zona estavam nos seus postos de vigilância como se fossem escutas
enviadas por algum comando. A cadela preta veio ao meu encontro enquanto metia
as chaves no nariz da portaria de entrada. À guisa de senha falei com ela. Agradecida,
afastou-se e parou debaixo do poste, encolhida ao estilo lagarto. Entrementes,
vindo não sabe de onde, um sujeito mal-encarado atirou a atenção dos guardiães da
zona que ladravam em várias direcções em defesa do território de guarda. Fazem-no
com razão, primeiro, para corresponder ao tratamento que lhes damos, comida,
água e atenção, segundo, porque eles bem conhecem a couve da sua horta. Não era
muito tarde. Faltava para as duas da manhã. Repeti o ritual: água fresca na
caneca inox; olhar o céu estrelado da janela; dar tempo para o sono fechar a
noite. Acomodei-me no Queen, no lugar de sempre. Em pouquíssimos minutos
adormeci. De repente um beco húmido e mal-iluminado a uma distância de uns dez
a doze passos aproximava-se de mim. Não havia trânsito. O silêncio era
sepulcral. Surgiu um vulto atrás de mim. Olhei á minha volta. Ele seguia-me.
Aproximou-se, tomou-me nos braços, logo uma dobradiça gemeu e a porta abriu-se
discretamente. Entrámos os dois numa sala pequena e enfumaçada, no centro,
via-se uma mesinha cheia de pequenos objectos pessoais. Dali fomos para o
quarto de dormir. O vulto não hesitou em me despir e de me colocar na cama
protegida por uma belíssima colcha de seda bordada de imagens irreconhecíveis, porém,
quando ele se colocou à minha frente não houve outro remédio senão embrulharmo-nos
cegamente um no outro, contorcendo-nos como meadas de algodão na meia-luz que
tornavam as paredes mais distantes do que estavam na realidade. Arrojadas, as
nossas mãos navegavam na superfície morna dos desejos como germe em busca do rociado.
Aconteceu o que tinha de acontecer. O sonho entrou numa sonolência brutal. Nem
silêncio na tumba do faraó. Mais escuro do que a noite era o caminho do
regresso á vida. Assim que o cansaço cedeu lugar ao alívio alcancei uma rua onde
latiam cães. O guarda mandou-me parar. Não obedeci. Desatei a correr. Meia hora
depois, entrava em casa a berrar para a mulher: Linda! Linda! Consegui escapar.
Enraivecida e sob espanto a mulher veio
lá de dentro, acordada daquela maneira a essa hora da noite. As luzes estavam
acesas, inclusive a do quarto. Ao aproximarmos da cama, na fronha do
travesseiro do meu lado, o batom vermelho, sinalava, vivamente, a presença duma
outra mulher. Amedrontado pelo ocorrido, enrolei-me nela, pedindo socorro, incrédula,
a mulher não quis saber de explicação nenhuma. Que havia eu de dizer do batom na
almofada?
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