Encostei o carro para atender a
chamada. Sabes se aconteceu alguma coisa a Ano Nobu? Era a voz do Ildo Lobo.
Eram dez horas e poucos. Liguei ao Benoni, nada. Encontrei o Djik ao pé da
minha casa que me confirmou a morte do Ano. A partir dali a notícia encheu o
dia 14 de Janeiro que de quente virou bem mais pesado que o frio feriado do dia
anterior.
A RTP- África passou a entrevista
do músico falecido no dia dos seus anos. Os meus olhos procuravam os dele e de
seguida desciam para as mãos ao violão. Um de Janeiro – Dia Novo para Todos –
dia simbólico que galgava a montanha dos seus anos que não dava sinais de
padecimento. Ele sonhava recuperar algum dinheiro dos direitos autorais. Da
última vez que falámos tinha-me dito que outras composições suas iam ser registadas.
E agora?
Guardo comigo o registo sonoro de
uma das célebres tocatinas ali no terreiro da sua casa em Lem Pereira em que
estiveram presentes: Benoni, Djik, Xisto, Janito, Daniel Rendal, Ano e os seus
rapazes. Fizemos muita música e muita conversa amistosa naquela bela tarde de
Domingo.
Quando fui indigitado para
organizar um grupo musical para se deslocar aos Estados Unidos, em 1986,
dirigi-me à casa dele para o convidar a fazer parte da caravana. Ele com aquele
seu jeito de super humilde disse-me: - Barbosa estou-te muito grato. Mas eu não
toco assim grande coisa para fazer parte de um grupo de bons tocadores. O que é
que eu vou lá fazer?
- Olha, vou eu, Tu, Daniel
Rendall, Pipita, Djô d’Iloy, Povu, Fernanda Fontes e Eutrópio Lima. O ensaio é
no Pipita às 19H00. Ofereceu a casa para os ensaios.
- Não!... Então a coisa já está
organizada! Mas, Barbosa, achas mesmo que eu devo ir com vocês?
- Sim, Ano, mesmo que seja só
para passear. Mereces e pronto. Tu vais ver como é a América, como é que os
patrícios vivem lá e vamos tocar para eles. Olha aquela música tua ta Kun- dun
Kun-dun que o Ildo cantou fez furor nos salões de festa. És muito conhecido,
homem. Vá!... Prepara a maleta e vamos todos juntos.
- Está bem. Não te vou
contrariar. Vou falar com a minha mulher. Leva o meu número de telefone para
qualquer coisa mais.
Chamou e presentou-me a sua
mulher. Mandou vir a garrafa e o copo de circunstância e celebramos a bela
notícia e a conversar sobre a nossa vida.
Organizámos e partimos para a
ilha do Sal. Na madrugada de 11 de Junho de 1986 rumamos para Nova Iorque a
bordo do South Africa Airwais. Ainda em terra, no Sal, o Eutrópio fez as
recomendações necessárias quanto a forma de estar de cada um de nós. «Barbosa
foi bom falares assim. Nessa coisa da viagem a gente não se deve descuidar.
Qualquer disfarce dá problemas» «Se deres por bem ficamos juntos. Não é por
nada. Conheço-te melhor» «O avião da South África trata bem à gente. Comida a
vontade» «Não dormi, quer dizer, foi aquela djonga diskunfiadu» «Ano Nobu
dentu-l Mérka mé... Barbosa, bó é disgraciadu rapaz. Olha onde ficou
Sandomingos?». Comentava assim comigo naquela sua voz especial de cada vez que
algo lhe vinha à cabeça. Sempre juntos, lado a lado tanto na ida como no
regresso.
Chegámos e alojámos em casa do
Manuel da Luz o promotor da nossa ida. Cansados da viagem mas sempre animados.
O Ano foi o primeiro a ir para o quarto. Minutos depois fez-me sinal e subi ao
quarto dele. Mostrou-me primeiro as cartas de que era portador. Depois a roupa
ainda dentro da maleta. Tudo estava encharcado de grogue. As tampas dos dois
boiões de plástico tinham fugido e o derrame foi fatal. A salvo tinha ficado o
frasquinho de vidro com tabaco e garrafinha para nós. Ele ficou impaciente
diante daquilo. «Barbosa, as cartas e os retractos de gente que eu trouxe para
entregar... diz-me agora como fazer? Olha, vamos descansar primeiro. Logo a
gente arranja tudo. Vou contigo falar com as pessoas e explicar-lhes o
acontecido. Levas tudo como está para verem. Disse-o. Ele acabou por se acalmar
um pouco, a descansar até a hora do almoço. Esse contratempo tinha-lhe ficado a
rolar na sua cabeça, lamentando da situação de que não era culpado.
Dei conta ao Manuel da Luz mais o
irmão Ulisses que providenciaram logo roupa nova e algo mais para Ano.
Recomposto, desceu para tomar parte na recepção preparada para nós. Depois
saímos a dar aquelas voltinhas da praxe nas redondezas e respirar o ar
americano que à partida trazia muita humidade e um calor aborrecido e à mistura
um cheiro a queimado duma casa ardida a poucos metros dali. Estávamos na zona
Rocksbury onde se via várias casas degradadas e algumas vedações com muito lixo
e coisas velhas dentro. Mais abaixo, o esqueleto carbonizado duma moradia.
Noutra rua à beira do passeio jazia um carro ardido. Cada um de nós comentava
baixinho o que íamos vendo. A tarde foi-se, regressamos á casa, tocamos
bastante, petiscamos e fomos dormir. A Fernanda Fontes tinha ido ficar com os
familiares em Situate, longe de onde estávamos alojados.
No dia seguinte começámos a
cumprir o programa musical cujo término era no dia cinco de Julho a tocar a
bordo do Ernestina, em Nova Iorque, navio oferecido a América pelo governo de
Cabo Verde. Cumprimos com muito êxito o programa em Boston, Brockton,
Pawtucket, Providence e lugares para onde fomos convidados. De Boston para Nova
Iorque fizemos seis horas e tal de viagem, incluindo paragens para água e café.
Na noite da viagem dormi mais cedo do que os outros dentro do carro já a pensar
na viagem enquanto os outros curtiam uma tocatina. Tive de tomar o volante em
Providence já que o motorista dava
sinais de sono ao volante. O Ano seguia na furgoneta da frente com os outros.
Daniel Rendall, Povo iam comigo. Todos dormiam. Foi uma viagem diabólica. Nova
York ardia de calor. O cheiro do ar era insuportável. Mal chegamos começamos a
falar no penoso regresso no dia seguinte.
Foi uma maratona dessas
desgastantes, que desagrada e enfada mas curtida. Nova York não me embasbacou
não obstante a imponência da cidade e o movimento de pessoas e de carros.
Chegar ao Harbor Port onde estava o Ernestina foi penoso. Havia um mar de gente
nas proximidades que nos dificultava o acesso ao nosso local. Nenhum de nós
tinha conseguido até então tamanha proeza. Tocar vinte e cinco dias seguidos e
às vezes em dois locais diferentes no mesmo dia. Cansativo. Mas foi bom, foi
bonito e muito gratificante.
Foi em Brockton, no salão
Antony’s, que, a meu pedido, Ano Nobu pela primeira vez, cantou em público,
coisa que jamais tinha pensado, confessou-me. Não resistiu à minha teimosia.
«Camarada Pepé Lopi» «Ta Kun-dun Kun-dun» foi o que ele cantou. Depois saiu-me
com esta: «Barbosa, uma morna para fechar... Linda.. aguenta em Ré Menor». Em
vários lagares as suas músicas foram muito apreciadas, destacando como grande
compositor de mornas e coladeiras.
Findamos o programa e deixamos
saudades, muitas mesmo principalmente naquelas pessoas que viram em nós o Cabo
Verde de suas origens. Do grupo, dois decidiram ficar. Soube depois que alguns
amigos quiseram que o Ano ficasse por mais uns tempos. Mas regressámos. Ano
trazia consigo vários instrumentos oferta de amigos, um enorme aparelho de
radio-cassete e outais coisas. Ajudei-o a desembaraçar as coisas no chek-in e
fomos directos para a sala de embarque. Entrementes o Pipita perdeu o cupão de
embarque e tive de o ajudar a obter um novo documento, graças á minha condição
de dirigente na Agencia Nacional de Viagens, agente da SAA.
Foi uma viagem que nos marcou a
todos de uma forma satisfatória e particular. Falamos sempre dela com muito
gosto. Uns anos depois, viajaram para a eternidade dois grandes companheiros o
grande músico e amigo Sr. Pipita e o Mestre afável e bom companheiro Ano Nobu.
Ano Nobu poeta-músico-dramaturgo
que utilizava as cores do som para lavrar o sentir de um povo, um escriba dos
factos, dos jardins, das fontes, dos rumores da sua ribeira, das flores
produtoras do incenso na floresta dos seus anos vividos, um chefe de orquestra
que comandava com o olhar e com o sorriso os seus pupilos. Pegando o arquivo
das suas composições senti que estava ante um sábio, um espírito de
sensibilidade original que fecundava as notas musicais e as deixava ressonar e
a estenderem-se no vibrar na caixa-de-ressonância do corpo de madeira que
segurava em peito com mimo e com arte, sem acidentes, sem estorvos, porque eram
límpidas as suas melodias.
De notar que os seus temas são
tratados de igual forma, com arte e mestria, sobressaindo em todos eles a
beleza, a harmonia, a suavidade e o necessário equilíbrio, acentuação própria
de quem gozava de genialidade e carisma, próprias de pessoa sabedora. Eu que tive a oportunidade soberana de
conhecer e de apertar as mãos desta grande personalidade, deste grande espirito
de Santiago, só me resta nestas linhas, honrar a sua memória.
Vi SANTIAGO regenerar-se ao reter
no seu sagrado chão os restos de um filho ilustre e digno quanto é Ano Nobu.
Senti a Ilha crescer, Sandomingos a engrandecer, o mundo rural a expressar o
seu sentir nobre, brilhar na sua cultura e no respeito à sua velha tradição.
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