sábado, 28 de maio de 2016

A Viagem, o Mestre & o Tributo



Encostei o carro para atender a chamada. Sabes se aconteceu alguma coisa a Ano Nobu? Era a voz do Ildo Lobo. Eram dez horas e poucos. Liguei ao Benoni, nada. Encontrei o Djik ao pé da minha casa que me confirmou a morte do Ano. A partir dali a notícia encheu o dia 14 de Janeiro que de quente virou bem mais pesado que o frio feriado do dia anterior.

A RTP- África passou a entrevista do músico falecido no dia dos seus anos. Os meus olhos procuravam os dele e de seguida desciam para as mãos ao violão. Um de Janeiro – Dia Novo para Todos – dia simbólico que galgava a montanha dos seus anos que não dava sinais de padecimento. Ele sonhava recuperar algum dinheiro dos direitos autorais. Da última vez que falámos tinha-me dito que outras composições suas iam ser registadas. E agora?

Guardo comigo o registo sonoro de uma das célebres tocatinas ali no terreiro da sua casa em Lem Pereira em que estiveram presentes: Benoni, Djik, Xisto, Janito, Daniel Rendal, Ano e os seus rapazes. Fizemos muita música e muita conversa amistosa naquela bela tarde de Domingo.
Quando fui indigitado para organizar um grupo musical para se deslocar aos Estados Unidos, em 1986, dirigi-me à casa dele para o convidar a fazer parte da caravana. Ele com aquele seu jeito de super humilde disse-me: - Barbosa estou-te muito grato. Mas eu não toco assim grande coisa para fazer parte de um grupo de bons tocadores. O que é que eu vou lá fazer?
- Olha, vou eu, Tu, Daniel Rendall, Pipita, Djô d’Iloy, Povu, Fernanda Fontes e Eutrópio Lima. O ensaio é no Pipita às 19H00. Ofereceu a casa para os ensaios.
- Não!... Então a coisa já está organizada! Mas, Barbosa, achas mesmo que eu devo ir com vocês?
- Sim, Ano, mesmo que seja só para passear. Mereces e pronto. Tu vais ver como é a América, como é que os patrícios vivem lá e vamos tocar para eles. Olha aquela música tua ta Kun- dun Kun-dun que o Ildo cantou fez furor nos salões de festa. És muito conhecido, homem. Vá!... Prepara a maleta e vamos todos juntos.
- Está bem. Não te vou contrariar. Vou falar com a minha mulher. Leva o meu número de telefone para qualquer coisa mais.
Chamou e presentou-me a sua mulher. Mandou vir a garrafa e o copo de circunstância e celebramos a bela notícia e a conversar sobre a nossa vida.

Organizámos e partimos para a ilha do Sal. Na madrugada de 11 de Junho de 1986 rumamos para Nova Iorque a bordo do South Africa Airwais. Ainda em terra, no Sal, o Eutrópio fez as recomendações necessárias quanto a forma de estar de cada um de nós. «Barbosa foi bom falares assim. Nessa coisa da viagem a gente não se deve descuidar. Qualquer disfarce dá problemas» «Se deres por bem ficamos juntos. Não é por nada. Conheço-te melhor» «O avião da South África trata bem à gente. Comida a vontade» «Não dormi, quer dizer, foi aquela djonga diskunfiadu» «Ano Nobu dentu-l Mérka mé... Barbosa, bó é disgraciadu rapaz. Olha onde ficou Sandomingos?». Comentava assim comigo naquela sua voz especial de cada vez que algo lhe vinha à cabeça. Sempre juntos, lado a lado tanto na ida como no regresso.

Chegámos e alojámos em casa do Manuel da Luz o promotor da nossa ida. Cansados da viagem mas sempre animados. O Ano foi o primeiro a ir para o quarto. Minutos depois fez-me sinal e subi ao quarto dele. Mostrou-me primeiro as cartas de que era portador. Depois a roupa ainda dentro da maleta. Tudo estava encharcado de grogue. As tampas dos dois boiões de plástico tinham fugido e o derrame foi fatal. A salvo tinha ficado o frasquinho de vidro com tabaco e garrafinha para nós. Ele ficou impaciente diante daquilo. «Barbosa, as cartas e os retractos de gente que eu trouxe para entregar... diz-me agora como fazer? Olha, vamos descansar primeiro. Logo a gente arranja tudo. Vou contigo falar com as pessoas e explicar-lhes o acontecido. Levas tudo como está para verem. Disse-o. Ele acabou por se acalmar um pouco, a descansar até a hora do almoço. Esse contratempo tinha-lhe ficado a rolar na sua cabeça, lamentando da situação de que não era culpado.

Dei conta ao Manuel da Luz mais o irmão Ulisses que providenciaram logo roupa nova e algo mais para Ano. Recomposto, desceu para tomar parte na recepção preparada para nós. Depois saímos a dar aquelas voltinhas da praxe nas redondezas e respirar o ar americano que à partida trazia muita humidade e um calor aborrecido e à mistura um cheiro a queimado duma casa ardida a poucos metros dali. Estávamos na zona Rocksbury onde se via várias casas degradadas e algumas vedações com muito lixo e coisas velhas dentro. Mais abaixo, o esqueleto carbonizado duma moradia. Noutra rua à beira do passeio jazia um carro ardido. Cada um de nós comentava baixinho o que íamos vendo. A tarde foi-se, regressamos á casa, tocamos bastante, petiscamos e fomos dormir. A Fernanda Fontes tinha ido ficar com os familiares em Situate, longe de onde estávamos alojados.

No dia seguinte começámos a cumprir o programa musical cujo término era no dia cinco de Julho a tocar a bordo do Ernestina, em Nova Iorque, navio oferecido a América pelo governo de Cabo Verde. Cumprimos com muito êxito o programa em Boston, Brockton, Pawtucket, Providence e lugares para onde fomos convidados. De Boston para Nova Iorque fizemos seis horas e tal de viagem, incluindo paragens para água e café. Na noite da viagem dormi mais cedo do que os outros dentro do carro já a pensar na viagem enquanto os outros curtiam uma tocatina. Tive de tomar o volante em Providence já que  o motorista dava sinais de sono ao volante. O Ano seguia na furgoneta da frente com os outros. Daniel Rendall, Povo iam comigo. Todos dormiam. Foi uma viagem diabólica. Nova York ardia de calor. O cheiro do ar era insuportável. Mal chegamos começamos a falar no penoso regresso no dia seguinte.
Foi uma maratona dessas desgastantes, que desagrada e enfada mas curtida. Nova York não me embasbacou não obstante a imponência da cidade e o movimento de pessoas e de carros. Chegar ao Harbor Port onde estava o Ernestina foi penoso. Havia um mar de gente nas proximidades que nos dificultava o acesso ao nosso local. Nenhum de nós tinha conseguido até então tamanha proeza. Tocar vinte e cinco dias seguidos e às vezes em dois locais diferentes no mesmo dia. Cansativo. Mas foi bom, foi bonito e muito gratificante.

Foi em Brockton, no salão Antony’s, que, a meu pedido, Ano Nobu pela primeira vez, cantou em público, coisa que jamais tinha pensado, confessou-me. Não resistiu à minha teimosia. «Camarada Pepé Lopi» «Ta Kun-dun Kun-dun» foi o que ele cantou. Depois saiu-me com esta: «Barbosa, uma morna para fechar... Linda.. aguenta em Ré Menor». Em vários lagares as suas músicas foram muito apreciadas, destacando como grande compositor de mornas e coladeiras.
Findamos o programa e deixamos saudades, muitas mesmo principalmente naquelas pessoas que viram em nós o Cabo Verde de suas origens. Do grupo, dois decidiram ficar. Soube depois que alguns amigos quiseram que o Ano ficasse por mais uns tempos. Mas regressámos. Ano trazia consigo vários instrumentos oferta de amigos, um enorme aparelho de radio-cassete e outais coisas. Ajudei-o a desembaraçar as coisas no chek-in e fomos directos para a sala de embarque. Entrementes o Pipita perdeu o cupão de embarque e tive de o ajudar a obter um novo documento, graças á minha condição de dirigente na Agencia Nacional de Viagens, agente da SAA.

Foi uma viagem que nos marcou a todos de uma forma satisfatória e particular. Falamos sempre dela com muito gosto. Uns anos depois, viajaram para a eternidade dois grandes companheiros o grande músico e amigo Sr. Pipita e o Mestre afável e bom companheiro Ano Nobu.
Ano Nobu poeta-músico-dramaturgo que utilizava as cores do som para lavrar o sentir de um povo, um escriba dos factos, dos jardins, das fontes, dos rumores da sua ribeira, das flores produtoras do incenso na floresta dos seus anos vividos, um chefe de orquestra que comandava com o olhar e com o sorriso os seus pupilos. Pegando o arquivo das suas composições senti que estava ante um sábio, um espírito de sensibilidade original que fecundava as notas musicais e as deixava ressonar e a estenderem-se no vibrar na caixa-de-ressonância do corpo de madeira que segurava em peito com mimo e com arte, sem acidentes, sem estorvos, porque eram límpidas as suas melodias.

De notar que os seus temas são tratados de igual forma, com arte e mestria, sobressaindo em todos eles a beleza, a harmonia, a suavidade e o necessário equilíbrio, acentuação própria de quem gozava de genialidade e carisma, próprias de pessoa sabedora.  Eu que tive a oportunidade soberana de conhecer e de apertar as mãos desta grande personalidade, deste grande espirito de Santiago, só me resta nestas linhas, honrar a sua memória.

Vi SANTIAGO regenerar-se ao reter no seu sagrado chão os restos de um filho ilustre e digno quanto é Ano Nobu. Senti a Ilha crescer, Sandomingos a engrandecer, o mundo rural a expressar o seu sentir nobre, brilhar na sua cultura e no respeito à sua velha tradição.

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RAPIZIUS

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