sábado, 4 de junho de 2016

Entrevista ao Jornal Expresso das Ilhas


Depois de Vinti Xintido Letrado na Kriolu, Son di ViraSon e Konfison na Finata, todos escritos em cabo-verdiano, Kaká Barboza regressa à poesia com “Gaveta Branca”, obra que será lançada hoje, na Biblioteca Nacional. Perpassam nas páginas deste livro reflecções metafísicas, existenciais e até cabalísticas, temas que apenas tangencialmente tinham merecido atenção do autor.

Expresso das Ilhas – O que quis dizer-nos com o livro “Gaveta Branca”?

Káka Barboza – “Gaveta Branca” é uma metáfora que surgiu do seguinte facto: o quarto onde trabalho é pintado de branco e tem uma janela por fora. Sempre que entrava no quarto, estava a entrar numa espécie de gaveta e abrindo o meu computador, afigurouse-me que eu estava abrindo uma janela para entrar em gavetas à semelhança do nosso cérebro que contém gavetas onde guardamos os factos e os acontecimentos. Então, é essa gaveta recheada de factos, de vivências e de lembranças que eu quis abrir e olhar para dentro. Branca porque a luz é branca. Então eu pensei: a gaveta branca tem que ter a luz branca da palavra. É essa metáfora que eu achei muito forte – gaveta branca - que não é muito usual, mas suponho que nós próprios e toda a humanidade estamos contidos numa gaveta. Essa gaveta universal que é uma gaveta infinita.

Dou-me conta que os seus temas habituais não estão neste livro. Surgem meditações filosóficas, existenciais e até cabalísticas.

Há outros aspectos que são recorrentes nos meus poemas, mas estão diluídos de uma forma muito pensada, porque este livro foi escrito ao longo de cerca de um ano. Olhando para a luz, no seu aspecto enquanto grandeza física, é um raio que atravessa todo o universo. Mas a nossa luz, que é a nossa mente, aquilo que nós produzimos enquanto ousadia de poder pensar, reflectir e ir até onde a nossa imaginação alcança é também um outro raio. Esse cruzamento de raios produziu todo o pensamento que o livro contém. Nesse aspecto é um livro reflectido. É um livro que não foi publicado antes justamente porque não tinha idade. Hoje tenho mais idade para o livro se parecer comigo. Mas eu quero chamar atenção para o seguinte facto: o fundamento deste livro é a luz. Nós temos que ser o centro da produção da luz. E essa luz é o conhecimento, é a possibilidade de alcançarmos o máximo em termos daquilo que podemos visualizar. Na poesia é também este o elemento essencial. É conseguir criar imagens através desse olhar, transformando essas imagens em palavras. De modo que é dentro desse campo que me situei para escrever o que está no livro.

Quem tenha lido seus anteriores trabalhos pensará facilmente que o Kaká Barboza se desencontrou com este livro. Pensa isso?

Não há um desencontro. Quando comecei a escrever este livro, passava por uma fase delicada da minha vida, estava desempregado. Com a preocupação de manter a família e as despesas normais da casa, criou-me alguma pressão. E, normalmente, quando há pressões desta natureza, suponho que os criadores estão mais bem preparados para explodirem, no sentido da criação de algo mais expressivo e mais emocional, mas também com uma capacidade reflexiva muito maior. Tratando-se de poesia, houve paz e sossego para que o livro pudesse conter essas reflexões, fugindo, de facto, um pouco daquilo que têm sido as minhas composições musicais e toda a poesia que eu escrevi e que venho escrevendo. Foi minha intenção que este livro fosse um pouco mais reflexivo, por isso o seu arquivamento durante 15 anos.

  
Portanto não foi inocentemente que procurou o filósofo Carlos Bellino para fazer o prefácio?

O racionalismo cristão tem uma carga de livros que não é doutrina racionalista. São livros que reflectem uma emanação do espírito. Eu leio esses livros com muita atenção para poder compreender até que ponto é que eu estaria em condições de elevar-me, cultivando o espírito. Mas um espírito resultante de um país como o nosso. De facto, o espírito é uma entidade universal, mas há também aquilo que eu considero o espírito cabo-verdiano que reside na pessoa e que se formata dentro da nossa realidade e da nossa vivência. Essas reflexões no meu livro baseiam-se justamente nessa possibilidade de nos encontrarmos connosco próprios, numa espécie de feixe de luz. Mas é também uma viagem que se reflecte em todos os poemas do livro.

 Sempre pensei que o espírito cabo-verdiano estivesse contido nos seus livros anteriores, entre eles Vinti Xintido Letrado na Kriolu, Son di ViraSon e Konfison na Finata.

O sândalo é uma árvore/ mas quando o machado fere o sândalo/ há um perfume que exala /e esse perfume contamina toda a atmosfera envolvente./Quem se aproxima do bosque sente esse perfume. Todos os meus livros têm um perfume. Esse perfume é um perfume telúrico, é toda a força da terra, porque penso que o nosso país, a nossa terra, é muito generoso; os homens é que não prestam. A nossa terra é muito generosa e todos cabemos cá, inclusivamente o resto do mundo, se cá vier. Agora, trata-se de dar guarida a todos e convivermos dentro de uma relação sã e depois procurar, assim como os nossos antepassados fizeram, organizar as suas vidas com os escassos recursos disponíveis. Tudo isso é uma força que encontramos nos primeiros escritos da nossa cabo-verdianidade. Por exemplo, num Manuel Lopes, num Baltasar Lopes, num Jorge Barbosa. E essa força sublima-se nos poetas mais actuais. Estou a falar de um Corsino Fortes, de um Mário Fonseca. São esses inputs que nos ajudam a recorrer a esses mesmos recursos e enfatizar a nossa escrita de modo a que ela reflicta toda a cabo-verdianidade possível. O meu livro tem também essa aspiração que é um percurso pela luz e pela voz. Dá-se luz à voz e voz e luz à palavra. É como se estivéssemos a dar voz, luz e palavra a estas ilhas generosas que nós temos.

 Nos seus livros anteriores situa a essência da cabo-verdianidade no interior da ilha ou das ilhas. Continua a pensar desta forma?

Eu acho que Cabo Verde é um todo na sua diversidade, mas devemos partir de um ponto. E o ponto de que eu parto para congregar a diversidade é o ponto onde me fiz homem, onde eu senti todo o ambiente envolvente, toda a vivência, toda a aprendizagem aliadas ao paisagístico, ao labor e às ambições…Esse ponto é a Vila da Assomada, no concelho de Santa Catarina, onde cresci e passei toda a minha infância. É um concelho mítico, cheio de história e rico em tradições. De modo que apreendendo bem essa realidade. Nós podemos chegar e penetrar com alguma facilidade nas outras realidades. As nossas localidades são pontos de onde partimos para outras realidades, sejam urbanas ou rurais. Eu acredito que se parto de um ponto para outro, tenho que acrescentar pontes e não subtrair. Portanto, a nossa diversidade é um somatório de pontos que dão um conjunto de pontos que acabam por formar ou uma linha recta, ou um arco. De modo que eu acho que, de facto, devemos é aproveitar tudo aquilo que as nossas realidades locais nos fornecem para contribuirmos no sentido de gerar, na diversidade, uma forma mais capaz de unificar e criar esse todo que é a crioulidade.

 Tinha ficado com a impressão que nos livros anteriores localizou esse ponto, o tal “Aleph” de que fala Bellino no prefácio, em Santa Catarina.

Provavelmente, ou instintivamente, diria que sim, porque o poeta Mário Fonseca, quando lia os meus textos na língua materna, dizia-me sempre que eu apostava muito no vernáculo. Eu acredito que sim, que instintivamente parto desse grande pressuposto. Agora, partir desse pressuposto não quererá dizer que os outros pressupostos que existem nos centros urbanos, toda essa erudição, não são importantes. É que há uma coisa importante: se nós partirmos do campo para a cidade, sobretudo na ilha de Santiago, estaremos a trazer toda a simplicidade, toda a filosofia campesina, toda essa harmonia, toda essa paisagem para a cidade. A cidade é que nos tem que compreender, porque o camponês percebe a cidade, mas a cidade, nessa dinâmica das relações sociais, culturais e económicas tende a qualificar-se deixando um pouco o campo para trás. Mas o campo é fértil em humildade e numa harmonia mais sã. O campo tem acordes próprios que conseguem dar tranquilidade, ao passo que a cidade pode também gozar dessa tranquilidade, mas há uma agitação que não se esconde.

 Na verdade, a magia da água a correr nas ribeiras não existe na cidade.

Eu compus uma canção que reflecte a necessidade dessa água. Eu falo no em Azágua. Mas essa Azágua é uma Azágua ainda mais ampla e tem como ponto de partida a própria água, porque a água tranquiliza. Em Cabo Verde a água tem um valor cultural enorme, porque nós nascemos numa situação de falta ou ausência total da água que significa também a ausência do verde. O pouco verde que nós temos é da escassa humidade. Mas quando vem a chuva, sobretudo quando a água corre numa ribeira, é uma alegria. É uma alegria cantante, porque a água faz-nos reviver para dentro essa fartura com que ambicionamos e sonhamos. Quando a água vai para o mar, ficamos tristes, porque ela passa e vai-se embora. Felizmente hoje conseguimos reter alguma água e não é por acaso que as nossas barragens atraem muitos curiosos e antigamente as lagoas eram visitadas e as crianças iam para aí brincar. Ia-se à ribeira lavar a roupa, apanhar a água e dar de beber aos animais. São momentos interessantes, porque ajuda-nos a resolver muitos problemas interiores que a gente tem.

 É estranho que o milho entre nós tenha uma carga simbólica que a nossa velha água não tem.

Certamente. Eu acho que nós não temos uma cultura da água. Ter cultura da água significa aproveitá-la no máximo, mas também respeitar o seu uso. É muito paradoxal que numa terra onde a água escasseia haja um uso desordenado do precioso líquido, como se fossemos um país de muita água. De facto, as nossas ilhas são cercadas pela água do mar, mas a água potável que nos ajuda a ter uma vida mais apropriada, essa água é ainda muito maltratada, em termos de uso, em termos de respeito e em termos de elemento a ser valorado para fazer parte da nossa cultura. Nós dizemos que a cachupa é um elemento da nossa cultura, mas a cachupa faz-se com água. De modo que o milho e a água estão intrinsecamente ligados. 

Última pergunta. Pela dimensão que alcançou como compositor, considera-se mais músico ou mais poeta?

Eu já li músicos, trovadores ou letristas e já li poetas músicos. Provavelmente eu sou esse lápis que é afiado dos dois lados. Quando um se gasta, você volta para o outro lado para escrever com a outra ponta que está afiada. Nesse lápis eu sou música e poesia, porque a música existe num bom poema. Há uma musicalidade que reside na essência das palavras. A mutação e a musculação dos versos sugerem um ritmo e havendo ritmo é porque existe uma musicalidade. Este é um aspecto. Agora, sendo músico torna-se-me mais fácil a percepção do ritmo e da musicalidade. Existe uma fronteira entre música e poesia, mas depende daquilo que é a pessoa. Acho que em mim essa fronteira é nítida. Por vezes sou mais músico do que poeta. Depois ponho de lado a música para ser mais poeta do que músico. Tenho poemas meus que musiquei e acho que ficaram perfeitas. Por exemplo, Lavrador di nha terra Ntem fé é uma letra muito significativa que transmite muito, mas a melodia acabou por ajudar a expandir muito mais a mensagem e a chamar mais a atenção. Portanto, nesse aspecto eu acho que há uma dose de ousadia, mas também de muita felicidade.


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