sábado, 14 de outubro de 2017

RAPIZIUS

                                                          

      BOAVISTA A PEDRA TRÊS
  
Logo nos primeiros dias de Fevereiro de 1966 parti para a ilha da Boa Vista mobilizado pelo Técnico de Obras da Junta Autónoma dos Portos, Manuel Barbosa, meu tio, para trabalhar como apontador nas obras de recuperação do cais de madeira do porto de Sal Rei. O barco de pesca Fada da Ultra - Empresa de Transformação do Pescado - transportou-nos juntamente com o material, cimento, ferro, pregos e madeira para os trabalhos de reparação do cais de madeira. Dona Clarice -  Nha Cakish – deu-nos de arrendamento um quaro grande no primeiro piso onde morava.
 Em pouco tempo já era conhecido de muita gente, principalmente, dos trabalhadores, homens e mulheres, de resto a reduzida população da ilha favorecia a aproximação entre as pessoas de forma rápida. O facto de ser eu a fazer a chamada ao ponto e proceder pagamentos ao pessoal era normal que assim fosse. Outrossim jogava o futebol e ingressaram-me no Benfica de Sal Rei. Com o mar à porta aprendi a remar, a nadar e a gostar mesmo do mar. O areal era infindo, limpo e imperava o sossego.
A terra era seca, rasa e de muito sol. Cedo, a paisagem da ilha convidou-me a perceber quanto determinado era o boavistense, quanto corajoso ele era e o que é que teve de suportar para sobreviver, fazendo das dunas o seu cavalo de esperança e da aridez o bordão do sustento, premissas que moldaram um jeito de estar, de ser e de se relacionar com a natureza, um proceder que influencio a sua maneira de compor, de cantar, de dançar e de se manifestar quer nas praticas domesticas e nos festejos populares, cultura bem diferenciada da das gentes das restantes ilhas do arquipélago. A ilha da Boa Vista influenciou bastante a minha juventude, marcando fortemente a minha forma de tocar violão. Era raro não haver no fim do dia de trabalho tocatina entre amigos. Eu morava bem perto da casa do Sr. Gregório, pai de Herculano Vieira, do Dança e da Maxencia, todos eles tocadores de violão. Quase todos os rapazes da vila eram violinistas. Aos fins-de-semana era serenata ao luar, pois, não havia luz eléctrica nessa altura.
Anos depois, pisando o mesmo chão, revendo a mesma casinha de madeira ali no cais antigo, de olhar ancorado na mesma baía, o longínquo trouxe-me o inolvidável, as gentes de outrora Nha Clarice, Nha Guidinha, Nh’Aguinólde, Vaiss Carpinteiro Naval, Fulim, Nhófa, Dansa, Nery, Bia, Fidélia, Mestre Marcos, irmãos Da Cruz e Fausto Rosario, Firrin, Rosário, Nhunguin, Txunkin, Firmino, Mestre Djon de Ti Pól, Noel Fortes, Ultra, Alfandega, Loja Dona Irene (hoje, Dona Hirondina), os botes carregados de peixe escalado vindos das Gatas e os ensaios do Carnaval no quintalão da Ultra. Anos depois, o sentimento era igual, mas a realidade tinha mudado completamente. Na ilha da Boa Vista, a terceira em dimensão no conjunto do arquipélago, fervilhava a nova era, a dos andaimes e a das grandes construções, a da procura e das migrações, a do aumento populacional, a da edificação da futura cidade de Sal Rei. Além, um pouco para interior a Ribeira do Rabil, a mais virgem bacia hidrográfica das ilhas, o casamento das covas com as sementes, anuído pela gota-gota nas parcelas agrícolas, era oiro sobre o índigo, as grandes obras  em curso, o Aeroporto Internacional do Rabil, de amplo tapete basáltico listrado de branco, era a porta de entrada para os visitantes, os hotéis de grande porte eram, adentro da perspectiva de valorização e revitalização da ilha, acréscimos formidáveis. Vislumbrava-se um futuro promissor, onde o revigoramento das tradições culturais da ilha, acções de redescoberta dos bens culturais e patrimoniais, trunfos fortes a serem trabalhados e exibidos aos forasteiros, àqueles interessados num turismo pacífico, da busca de informações, do conhecimento da história, das figuras destacadas, dos lugares com nome, das curiosidades locais, dos costumes, enfim da identidade de um povo, como disse antes, que fez das dunas o cavalo de esperança e da aridez o bordão do sustento
Boavista está-se desenhando como uma forte região de Rota Turística, mas, para isso acontecer de forma equilibrada e rentável, o poder local terá de ter muita lucidez, muita capacidade de trabalho e de gente capacitada para vislumbrar caminhos a seguir, o que obriga a uma acção inteligente nunca a reboque das modas copiadas para satisfazer pressões e interesses políticos imediatos em detrimento da avaliação correcta de cada projecto e de cada medida a implementar-se. Fala-se em todo o lado: temos potencialidades. Mas a questão é como transformá-las em ofertas e produtos de consumo de qualidade. Turismo não é banhos de mar e pisar praias arenosas e limpas. É antes um fenómeno que gera em si um vaivém de gente de latitudes e culturas diversificadas, de diferentes modos de falar, de estar e de actuar, com aspectos positivos e negativos a impender sobre a realidade física e humana da localidade onde é exercida. Importa reflectir sobre o que tem interesse para vida dos naturais, numa palavra que ganhos de futuro. Muitos vêm no turismo uma espécie de prancha de redenção para muitas das actividades artesanais moribundas, porém, outros pretendem apresentar artefactos imitados como sendo escultura nacional para o consumo dos visitantes.
Que ofertas devem ser trabalhadas para contrapor este estado de coisas?
Agendado estão a preservação dos objectos, do património construído, da cultura urbana, da cultura rural, das artes e dos ofícios tradicionais e um conjunto de coisas, mas não há orçamento, se ele existe desaparece em acções demagógicas do chamado apoio social, enquanto os criadores das artes sofrem do desgaste e da perca do entusiasmo.
A criação do ambiente favorável através de afectação de recursos, medidas legais e administrativas, acções de formação e de promoção das artes é obrigação constitucional, é um direito dos criadores, é obrigação e não favor ou favorecimentos. O papel do sector público e do privado na promoção do turismo, deve ser o mesmo na promoção e protecção das artes e dos seus criadores; a contribuição da comunidade local no desenvolvimento do turismo deve ser a mesma devida à cultura; o bom turismo, os impactes sócio cultural deste, o turismo como agente de mudança sociocultural, os impactes culturais do turismo, o desenvolvimento do turismo cultural, são matérias que estão no âmbito do achismo, ficando por descortinar o que é relevante e como encaminhá-lo. As equipas camarárias, todas elas, tinham de deslaçar da apatia e lançarem-se na criação de ideias motivadoras dos seus munícipes, na criação de redes de promoção e de divulgação da imagem social das localidades, na equiponderação das valências em resultado das transformações que vão tendo lugar, para melhor poderem sugerir caminhos a seguir.              
Valeu muito a estada na ilha pedra três do triângulo da minha existência. 
À Yléh do deserto de Viana um beijo do peregrino.
Sabiam que arrabil é nome da antiga rabeca pastoril de origem árabe.  

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RAPIZIUS

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