Cartas do Deserto
Coimbra, 07 de Novembro de 2012
Hoje a manhã estava fresca. Tinha chovido durante a noite. Tal como me acontece com frequência, tinha saído de casa com atraso. As minhas colegas Ana e Céu aguardavam-me. Mergulhado nos pensamentos, lá fui, com os passos guiados por “piloto automático”. Já na Avenida Fernão de Magalhães dei comigo a lacrimejar. Não sei se do fresco que me açoitava os olhos, se da emoção de estar a viver um momento novo na minha vida. Talvez fosse um misto de ambas as asperezas. Ou até um cocktail com porções não medidas de amargura e raiva. Na Avenida Fernão de Magalhães localizara-se até 31 de Maio passado a sede da Delegação da Lusa na Região Centro, onde partilhámos tantas horas, tantos dias, de tantos anos.
O encerramento e o degredo do trabalho em casa, desde então, prenunciavam já este desfecho. À entrada do Centro de Emprego de Coimbra ambas me esperavam, de pastas encostadas à anca, e a Ana já com a minha “senha de vez” na mão. Depois de transpor a parta de vidro, uma sala de espera repleta, com todos os bancos ocupados, e algumas pessoas em pé. Ninguém ria ou sorria. Raramente trocavam palavras.
De quando em vez fixavam o marcador luminoso que marcava o ritmo do atendimento. Quase todos tinham uma pasta de plástico na mão, ou no colo, contendo folhas de papel, e na mão direita agarravam o ticket de vez. Alguns jovens. Muitos dos 40 ou 50 anos. Uma fotografia do Portugal de hoje, pensei. Uns, recém desempregados, como eu e as minhas duas colegas, estavam lá para entregar os documentos de oficialização do despedimento, a tentar obter o subsídio de desemprego. Outros iam mostrar o testemunho das quatro tentativas mensais de procura de emprego a que estão obrigados. Será este o nosso fadário nos próximos meses, ou até que se esgote o direito ao fundo de desemprego.
O 31 de Outubro de 2012 foi-nos imposto aos três – a mim, à Maria do Céu e à Ana – como o último dia na Lusa. No meu caso ao fim de 24 anos e meio. O encerramento da Delegação em Coimbra, em finais de Maio último, e os desenvolvimentos subsequentes apontavam para o arrasar do grupo de jornalistas em Coimbra. Agora parece que o tufão arrasará muitos empregados da Lusa em todo o país, mas em particular os jornalistas que se encontram fora da bicefalia Lisboa-Porto.
Na manhã do dia 31 manifestei a adesão a um programa de saídas voluntárias, que melhor se poderia designar de saídas involuntárias. Na tarde desse dia soube que esse era o último da minha carreira na Lusa. Curiosamente estava a acompanhar uma conferência da UGT "Crise Económica e Social" quando o telemóvel vibrou. Saí da sala para o atender, e para minha perplexidade era um telefonema do responsável dos serviços técnicos da Lusa.
Ordenava-me a devolução com urgência dos equipamentos que tinha para uso no trabalho, pois aderira ao programa das ditas saídas voluntárias. Foi uma comunicação, por via indirecta, de um despedimento. Com estoicismo reentrei na sala para acompanhar o resto da conferência. Às 21:36, marcava o mostrador do telemóvel, enviei a última notícia que redigi para a Lusa. A última de muitos milhares de notícias que escrevi, primeiro na máquina de escrever, depois no telex, e há vários anos num computador.
Foi um momento triste, a todos os níveis. Encerrar desse modo uma carreira na Lusa que começara na última semana de Abril de 1988. Talvez tenha encerrado aí, também, a carreira de jornalista, dada a situação que vive o sector da imprensa.
Depois de limpo dos testemunhos do labor de vários anos, na segunda-feira passada coloquei numa caixa o computador, o telemóvel e a placa 3G. Tudo dentro da mochila onde os transportara para tantos trabalhos.
Como ataúde de tantos anos de trabalho, de tantas paixões e ansiedades vividas na procura da notícia, a caixa selada lá seguiu por correio registado para a sede da Lusa, em Lisboa.
(Um texto enviado por Francisco Fontes - meu grande amigo)
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