SEJAM PAIS-MENINO COMO EU
Era um cachorrinho do mais belo porte que podia haver. Bichinho
inteligente, amável e cheio de alegria. A casa maravilhou-se com a sua chegada.
Logo, começou a chover afectos e nomes. Pedi que não optassem por nomes
vulgares, esses colhidos em revistas e cenas de bonecos animados. Ele merecia um
nome adequado, um identificado com os atributos que possuía. Com pedagogia convenci
a casa inteira a aceitar o nome Vírgula. Incomum nos animais de estimação. Vírgula
é nome distinto. Nome de ordenação que faz acrobacias num texto. Acabou por
ficar assim o seu nome de baptismo. Era tanto o entusiasmo que voltamos a ser
meninos diante do brinquedo vivo que prendia a atenção de todos. Nos momentos
de sisudez ele comportava-se como um detective, dava voltas, cheirava, conferia
o espaço e o ambiente que o rodeava, deu uma corridinha para a varanda, num
cantinho, agachou-se fez xixi pela primeira vez num chão estranho. Chamei-lhe e
mostrei o jornal estendido no chão, lugar onde devia fazer cocó e urinar, logo,
para me mostrar que entendeu as indicações, pôs-se de cócoras e pingou dois
rolinhos justo em cima do papel, de seguida, de focinho erguido, a abanar o
rabo, atirou-se a mim, como que a confirmar a lição, sagrando-se, doravante, membro
da família de pleno direito a virgular a vida da casa, caso para dizer, que jamais
podíamos passar sem contar com o amigo amável, cheio de alegria, sempre
bem-disposto e bom companheiro.
Estava, pois, selada uma aliança efectiva, de infindas
vantagens, ou seja, íamos cuidar um do outro enquanto durasse a vida da casa. Belíssimo
foi o dia. Anoiteceu. Lá mesmo na varanda coloquei uma toalha de pouco uso no
chão para servir-lhe de cama, mas não, escolheu outro lugar. Logo à primeira, não
entendi a rejeição. Vendo bem, ele tinha razão. Quis o corredor, ponto
estratégico entre a sala e os quartos de dormir, onde coloquei a toalha,
farejou-a e posicionou-se. Apaguei as luzes. Leio sempre antes de dormir.
Passava da meia-noite. Ao ajeitar-me para apagar a lâmpada de cabeceira, o
amiguinho fazia-se de sentinela, olhámo-nos, despedi-me dele. Não dei pelo
momento da retirada. A casa caíra no sono profundo.
Assim que me apercebi da luz matinal que se abria tão lívida
nesse dia de Maio, ainda na cama, enquanto desmurchava o corpo e dava vivacidade
às pernas, o amiguinho aproximou-se, subiu e começou com festinhas, como a
querer saber se dormi bem e se estava bem-disposto, assim como ele, na verdade,
enquanto não falasse, insistia em ouvir a minha voz. Era a extraordinária e maravilhosa
prova da intensa amizade entre os animais e os humanos, quando não somos maus animais.
Ali verifiquei que o colorido nos olhos mudava consoante o momento. Quando
brincava era tom cinza azulada e quando estava a sério mudava para amarelado claro
como a chama dentro de uma lâmpada, e foi então que dei conta que os nossos
olhos falavam.
Chega e diz: - bom dia, dono.
Digo: - olá Vírgula.
De dia come e dorme. De noite anda pela casa, escuta e
obedece as ordens. Só se deita em cima da toalha. Sabe dos batons e do mau
cheiro. Topa conversas e o mínimo barulho e conhece bem os seus inimigos. Quando
aborrece e resmunga coisas, pensa e sente saudades. É amigo de confiança. Vale
mais um bicho amigo que amigo lixo. É tão lúcido, o Virgula.
Chego e digo: Virgula!
Quatro patas caminham e pararam no ponto final. Quatro-olhos
na interjeição. Dois pontos e vírgula no olhar. Reticências na cauda. Interrogação
no focinho. Vírgula e dono. Ponto parágrafo. Olhos nos olhos.
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