sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Da Música, do Vinho e do Desvelo



Da Música, do Vinho e do Desvelo

Não obstante as alterações políticas, sociais, económicas e culturais que varrem as nações do mundo, tocando o individuo e as colectividades, traindo hábitos e costumes, viciando condutas, apoucando tradições, maculando história, anulando vestígios e pertenças civilizacionais dos povos e das nações, apesar de sujeitados e asfixiados pelos poderes calculistas e pelo establishment instalados, um povo que se ufana da sua liberdade, não renuncia á luta e não se entrega por mais que os desajustes ameacem o seu direito ao bem-estar e à uma vida digna.  
Estou em crer que, na nossa terra, havemos de o poder fazer continuadamente, sabendo que o integrante expressivo da nossa cultura, nas suas mais diversas manifestações, especialmente, a música, que significa traço de união entre todos os naturais das ilhas, pela regência dos compositores e músicos, que inteligência, respeito, talento e alma, colocam ao seu serviço, ela, a nossa música, resistirá a modismos, contradirá o supérfluo e fiel às suas raízes se firmará e perdurará no tempo cumprindo o papel essencial como sinal e instrumento marcador da identidade nacional e da destrinça.
Daí, os compositores e os músicos que se respeitam não devem abdicar das suas obrigações, jamais, não devem alienar os primórdios e a posse do povo a que pertencem em troca de nada. Devem, pois, fazer valer a sua capacidade de observação, de avaliação, de síntese e de (re)criação, para mostrar, conduzir e fazer funcionar as suas obras como alavanca para o reforço da unicidade da caboverdianidade dentro e fora do espaço que os envolvem.
Fazendo uma abordagem da obra discográfica de Rui de Bitina, devo começar por realçar o labor dos autores, os verdadeiros donos dos temas que fazem parte dela, para depois opinar sobre a qualidade da obra. Falar de um disco é o mesmo que falar da música. É falar da criação artística. É falar dos autores. É falar dos músicos dele participante, ou seja, do arranjador, dos executantes e do intérprete e demais intervenientes na sua concepção e edição.
Pela garantia e categoria dos compositores inscritos na capa do presente disco depreende-se que o disco é bom, audível e marcador de balizas entre o antes e o agora da vivencia das gentes e cultura das ilhas.  
Assim, foi-nos dado a ouvir e a apreciar o seguinte:
- Rosa Kutelo, de Julio Correia, andamento melódico inspirado em ritmos das festanças populares que o compositor utilizou com saber e perícia exibindo uma mensagem recheada de memória e vivencias.
- Disgraça, de Dany Lobo, Talaia Baxu, tema superado com sapiência e de bela sonoridade, raconto de um facto, próprio da sua ilha, expressão perfeitamente adaptada ao violão caboverdiano.
- Súplica, de Joia, (saudoso músico e compositor) diálogo vindo do fundo da alma, um compor e um apelo de irmão para irmão, uma invocação à terra almejando a alvorada de um novo sonho para a sua ilha.
- Vem a Nós, Daniel Spenser, espelho de um modo de ver e de sentir a coladeira, enxuto, mas rico, onde o balanço rítmico e a palavra acasalam-se lindamente, onde a ironia transita sem síncope conforme a tradição.
- Detu’l Mi, de Mario Lúcio, ritmo funanbá, (estilo criado por Kaká Barboza), aponta o altruísmo, o telurismo e a imagística santiaguesa, não por acaso, mas para significar e representar o estado da alma.
- Doce Momento di Amor, de Antero Simas, morna, percurso melódico colorido do silencio da alva tropical, do navegar no prateado da lua, dos braços da noite nas curvas do violão, do murmúrio do mar e do pasmo das estrelas ante o esvair da serenata.
- Kassubody, de Kaká Barboza, funaná, raconto ficcionado da realidade, de ritmo e melodia alinhados com a denúncia em resultado da observação feita a um facto dos tempos actuais, aviltador da serenidade pública.   
- Nha Docin, Betu, morna, plasma a beleza dum recanto, onde o paisagístico assume o duelo do doce mais que doce, da ilha mais que ilha, de ponto mais que de partida, mas de vértice irradiante de visões e de sonhos.
- Nha Maninha, Antero Simas, coladeira, recados sem ilusão, um exercício anti inércia, texto incisivo, onde a melodia e balanço rítmico convidam à ponderação e tomada de posição.    
- Xinoy, Helder Nha Lúcia, funaná lento, sonoridade que nos convida a respirar fundo, que nos faz viajar pelo encanto do amor proibido, em que o uso de máximas dão magia e solenidade ao canto e á palavra.
 - Rufux Escacarex, Manel d’Novas, morna, ante o esplendor da baia do Porto Grande e a silhueta do Monte Cara, ante os símbolos e as artérias onde corro o sonhado Mindelo, inconformado o texto denuncia o estado débil de um corpo cuja esperança morre à tardinha e renasce ao amanhecer.           
Este é o disco do cantor e músico Rui de Bitina acabado de ser colocado à venda, cuja temática traz consigo marcas e sinais profundos que espelham a alma das ilhas e do individuo enquanto sujeito de um colectivo distinto.
Rui de Bitina é músico e cantor de boa nota. Portador de bela voz e romanceiro de registo, um amante da música que nos convida a palmilhar o moderno campo musical caboverdiano de lés-a-lés. Soube escolher os temas e os compositores, soube respeitar a leitura dos teores, dando-lhes a graça da sua voz e na clareza da dicção. Soube apresentar-se ao palco crítico do auditório, elegendo obras inéditas e as que tiveram eco positivo na percepção dos caboverdianos. Rui de Bitina não é revelação. Ele é cantor, dono do seu espaço, onde todas as noites de sextas e sábados está com os amigos que gostam de o ouvir interpretar e tocar. Uma palavra de enaltecimento ao produtor e aos músicos que emprestaram o seu talento e o seu saber na realização deste belo trabalho discográfico. Este disco terá impacto positivo se o soubermos escutar, ler e compreender os temas aconselhados.
Bem-haja a música nacional. KB

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