Da Música, do Vinho e do Desvelo
Não obstante as alterações políticas, sociais, económicas e
culturais que varrem as nações do mundo, tocando o individuo e as
colectividades, traindo hábitos e costumes, viciando condutas, apoucando
tradições, maculando história, anulando vestígios e pertenças civilizacionais dos
povos e das nações, apesar de sujeitados e asfixiados pelos poderes calculistas
e pelo establishment instalados, um povo que se ufana da sua liberdade, não
renuncia á luta e não se entrega por mais que os desajustes ameacem o seu
direito ao bem-estar e à uma vida digna.
Estou em crer que, na nossa terra, havemos de o poder fazer
continuadamente, sabendo que o integrante expressivo da nossa cultura, nas suas
mais diversas manifestações, especialmente, a música, que significa traço de
união entre todos os naturais das ilhas, pela regência dos compositores e
músicos, que inteligência, respeito, talento e alma, colocam ao seu serviço,
ela, a nossa música, resistirá a modismos, contradirá o supérfluo e fiel às suas
raízes se firmará e perdurará no tempo cumprindo o papel essencial como sinal e
instrumento marcador da identidade nacional e da destrinça.
Daí, os compositores e os músicos que se respeitam não devem
abdicar das suas obrigações, jamais, não devem alienar os primórdios e a posse
do povo a que pertencem em troca de nada. Devem, pois, fazer valer a sua capacidade
de observação, de avaliação, de síntese e de (re)criação, para mostrar, conduzir
e fazer funcionar as suas obras como alavanca para o reforço da unicidade da caboverdianidade
dentro e fora do espaço que os envolvem.
Fazendo uma abordagem da obra discográfica de Rui de Bitina,
devo começar por realçar o labor dos autores, os verdadeiros donos dos temas
que fazem parte dela, para depois opinar sobre a qualidade da obra. Falar de um
disco é o mesmo que falar da música. É falar da criação artística. É falar dos
autores. É falar dos músicos dele participante, ou seja, do arranjador, dos executantes
e do intérprete e demais intervenientes na sua concepção e edição.
Pela garantia e categoria dos compositores inscritos na capa
do presente disco depreende-se que o disco é bom, audível e marcador de balizas
entre o antes e o agora da vivencia das gentes e cultura das ilhas.
Assim, foi-nos dado a ouvir e a apreciar o seguinte:
- Rosa Kutelo, de Julio Correia, andamento melódico
inspirado em ritmos das festanças populares que o compositor utilizou com saber
e perícia exibindo uma mensagem recheada de memória e vivencias.
- Disgraça, de Dany Lobo, Talaia Baxu, tema superado com
sapiência e de bela sonoridade, raconto de um facto, próprio da sua ilha, expressão
perfeitamente adaptada ao violão caboverdiano.
- Súplica, de Joia, (saudoso músico e compositor) diálogo
vindo do fundo da alma, um compor e um apelo de irmão para irmão, uma invocação
à terra almejando a alvorada de um novo sonho para a sua ilha.
- Vem a Nós, Daniel Spenser, espelho de um modo de ver e de
sentir a coladeira, enxuto, mas rico, onde o balanço rítmico e a palavra acasalam-se
lindamente, onde a ironia transita sem síncope conforme a tradição.
- Detu’l Mi, de Mario Lúcio, ritmo funanbá, (estilo criado
por Kaká Barboza), aponta o altruísmo, o telurismo e a imagística santiaguesa,
não por acaso, mas para significar e representar o estado da alma.
- Doce Momento di Amor, de Antero Simas, morna, percurso
melódico colorido do silencio da alva tropical, do navegar no prateado da lua, dos
braços da noite nas curvas do violão, do murmúrio do mar e do pasmo das
estrelas ante o esvair da serenata.
- Kassubody, de Kaká Barboza, funaná, raconto ficcionado da
realidade, de ritmo e melodia alinhados com a denúncia em resultado da
observação feita a um facto dos tempos actuais, aviltador da serenidade
pública.
- Nha Docin, Betu, morna, plasma a beleza dum recanto, onde
o paisagístico assume o duelo do doce mais que doce, da ilha mais que ilha, de
ponto mais que de partida, mas de vértice irradiante de visões e de sonhos.
- Nha Maninha, Antero Simas, coladeira, recados sem ilusão, um
exercício anti inércia, texto incisivo, onde a melodia e balanço rítmico
convidam à ponderação e tomada de posição.
- Xinoy, Helder Nha Lúcia, funaná lento, sonoridade que nos
convida a respirar fundo, que nos faz viajar pelo encanto do amor proibido, em
que o uso de máximas dão magia e solenidade ao canto e á palavra.
- Rufux Escacarex,
Manel d’Novas, morna, ante o esplendor da baia do Porto Grande e a silhueta do
Monte Cara, ante os símbolos e as artérias onde corro o sonhado Mindelo,
inconformado o texto denuncia o estado débil de um corpo cuja esperança morre à
tardinha e renasce ao amanhecer.
Este é o disco do cantor e músico Rui de Bitina acabado de
ser colocado à venda, cuja temática traz consigo marcas e sinais profundos que
espelham a alma das ilhas e do individuo enquanto sujeito de um colectivo
distinto.
Rui de Bitina é músico e cantor de boa nota. Portador de
bela voz e romanceiro de registo, um amante da música que nos convida a palmilhar
o moderno campo musical caboverdiano de lés-a-lés. Soube escolher os temas e os
compositores, soube respeitar a leitura dos teores, dando-lhes a graça da sua
voz e na clareza da dicção. Soube apresentar-se ao palco crítico do auditório, elegendo
obras inéditas e as que tiveram eco positivo na percepção dos caboverdianos.
Rui de Bitina não é revelação. Ele é cantor, dono do seu espaço, onde todas as
noites de sextas e sábados está com os amigos que gostam de o ouvir interpretar
e tocar. Uma palavra de enaltecimento ao produtor e aos músicos que emprestaram
o seu talento e o seu saber na realização deste belo trabalho discográfico. Este
disco terá impacto positivo se o soubermos escutar, ler e compreender os temas
aconselhados.
Bem-haja a música nacional. KB
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