NOTA DE LEITURA
Boa Entrada é tudo menos lugar erótico, mas, sim, uma ribeira
exótica e cativante, situada na margem direita da sede da padroeira que dá nome
ao Concelho de Santa Catarina, parcela de bela paisagem, ribeira de muita vida
e de muita história, guardiã de ricas tradições, de trapiches, de cultivo e de figuras
notáveis, enfim, chão de cantadeiras, de músicos, de poetas, de artesãos e de
gente renomada. Eis que desta típica ribeira emerge para a literatura cabo-verdiana
a aluna prodigiosa, que cedo despertou-se para a vida e para a busca de saberes,
próprio dos filhos deste chão. A nossa aproximação deveu-se, talvez, à música e
á poesia que faço, facto ocorrido em 2013, período em que a conterrânea Artemisa
Ferreira formara-se em Tecnologia de Informação e Comunicação e preparava o
Mestrado em Realização Cinematográfica e Televisão, altura em que tive o
privilégio de ter em mãos o caderno de poemas da sua autoria. Impressionou-me no
imediato a ousadia da linguagem, o tratamento poético dado ao erotismo crioulo,
o estilo e a descrição inesperada, tudo a ver com a essência do amor, com o dom
femíneo, com a desmistificação do corpo e do sexo, onde a transfiguração do
real é explorado com paixão e arte.
A colectânea, Gruta Abençoada,
em avaliação contém um ciclo de poemas em que o erotismo é assumido como seres á
procura da realização de seus desejos num mundo de ardência constante, único, ante
a verdade que a sustenta e a mística da gruta donde tudo parte “Faminto os veados escorregam no abismo da
paixão”. A autora presenteia-nos com uma obra rara na literatura das ilhas,
justo pela forma como desmascara o corpo e alivia os gestos e os apetites eróticos,
elementos usados como símbolos munidos de inquietudes, de momentos excitantes e
de sentido extranormal, de vitalidade discursiva, onde o fascínio e o
fantástico viajam pela Gruta até o
fim do caminho, até a impalpável labareda, onde o trânsito das palavras e o seu
vínculo na folha em branco, abandeiram-se em textos sem precedentes, onde o ineditismo,
o absurdo das sentenças e a ousadia dos propósitos sobressaem de forma desabusada
conferindo arrojo e legitimidade á escrita erótica tal qual ela se nos
apresenta “O leite que jorra gesto/ Nos lábios
não murcha. Enquanto o gosto cheira/ O paladar consome / O queijo salgado no
palato”.
Os poemas são repletos de vida e de sensualidade. “Deixa-me amar-te à flor da pele/ Deixa-me
amar-te em gotas” versos dando vida à eternidade do amor, onde o poeta apropria-se
do físico, explora-o e livra-se dele em linguagem cuidada expondo o “nun prit” da
própria alma “Despe a pele morna que o
espirito sustenta”, metamorfoseando o real em inautêntico, dando rumo à perseguição
do desejo de amar e ser amado, ateando o fogo erótico, aliciando a morte do
possesso para a Gruta Abençoada “Deixa-te ressuscitar nos meus traços”.
São de ânsia e de agonia do tempo erótico o respirar profundo de cada verso. São
percursos que ganham alcance poético na linguagem extrovertida e na prudência em
diferenciar as fronteiras entre o erotismo e a pornografia, optando, a autora, por
uma não confusão entre uma e outra coisa. Em toda a narrativa o sexo não conta como
órgão pujante, mas como fonte de ardência poética, “Deixa-me amar-te assim, nua, quente e fértil” onde o tacto, o corpo,
o amor, o desejo, o folego, o cálice, o anoitecer, o despertar, o leito, a sensualidade,
a linguagem e o próprio sexo ardem como candeeiro único, para a salvação do
amor verídico, aquele que debitamos a quem amamos de verdade, a quem o sexo é revelação
do amor e algo natural praticado pelo par amante do amor.
Eis um dos momentos cativantes da poética de Artemisa
Ferreira, onde tudo o que vive se esvai no extasie e na nudez da gruta:
Agarras-me aqui / Bem aqui / Apalpas-me assim …assim
Seguras-me a língua / – Empresto-te o paladar
Suga a seiva embriaga-te em mim / Pedes-me os pedaços
Dou-te os caroços… enfeitiça-te em mim.
Os poemas da presente colectânea são manifestamente poemas
de amor, sendo a obra o escrutinar do arrojo de um começante e estreante nas
lides poéticas, definindo-se a autora Artemisa Ferreira como pessoa de imensa
beleza interior e de espírito inventivo, quiçá, pioneira da poesia lúbrica
actual das ilhas, livro que vale a pena ter, ler e apreciar até o último momento.
Pela amizade e pela cumplicidade fica esta nota, símbolo do
meu apreço e gratidão pelo ensejo de figurar no pórtico desta bela e complexa
obra.
Minhas sinceras felicitações.
Kaká Barboza
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