BOAVISTA A
PEDRA TRÊS
Logo
nos primeiros dias de Fevereiro de 1966 parti para a ilha da Boa Vista
mobilizado pelo Técnico de Obras da Junta Autónoma dos Portos, Manuel Barbosa, meu
tio, para trabalhar como apontador nas obras de recuperação do cais de madeira
do porto de Sal Rei. O barco de pesca Fada da Ultra - Empresa de Transformação
do Pescado - transportou-nos juntamente com o material, cimento, ferro, pregos e
madeira para os trabalhos de reparação do cais de madeira. Dona Clarice - Nha Cakish – deu-nos de arrendamento um quaro
grande no primeiro piso onde morava.
Em pouco tempo já era conhecido de muita gente,
principalmente, dos trabalhadores, homens e mulheres, de resto a reduzida
população da ilha favorecia a aproximação entre as pessoas de forma rápida. O
facto de ser eu a fazer a chamada ao ponto e proceder pagamentos ao pessoal era
normal que assim fosse. Outrossim jogava o futebol e ingressaram-me no Benfica de
Sal Rei. Com o mar à porta aprendi a remar, a nadar e a gostar mesmo do mar. O
areal era infindo, limpo e imperava o sossego.
A
terra era seca, rasa e de muito sol. Cedo, a paisagem da ilha convidou-me a perceber
quanto determinado era o boavistense, quanto corajoso ele era e o que é que
teve de suportar para sobreviver, fazendo das dunas o seu cavalo de esperança e
da aridez o bordão do sustento, premissas que moldaram um jeito de estar, de
ser e de se relacionar com a natureza, um proceder que influencio a sua maneira de
compor, de cantar, de dançar e de se manifestar quer nas praticas domesticas e
nos festejos populares, cultura bem diferenciada da das gentes das restantes
ilhas do arquipélago. A ilha da Boa Vista influenciou bastante a minha
juventude, marcando fortemente a minha forma de tocar violão. Era raro não
haver no fim do dia de trabalho tocatina entre amigos. Eu morava bem perto da
casa do Sr. Gregório, pai de Herculano Vieira, do Dança e da Maxencia, todos eles
tocadores de violão. Quase todos os rapazes da vila eram violinistas. Aos fins-de-semana
era serenata ao luar, pois, não havia luz eléctrica nessa altura.
Anos
depois, pisando o mesmo chão, revendo a mesma casinha de
madeira ali no cais antigo, de olhar ancorado na mesma baía, o longínquo trouxe-me
o inolvidável, as gentes de outrora Nha Clarice, Nha Guidinha, Nh’Aguinólde, Vaiss
Carpinteiro Naval, Fulim, Nhófa, Dansa, Nery, Bia, Fidélia, Mestre Marcos, irmãos
Da Cruz e Fausto Rosario, Firrin, Rosário, Nhunguin, Txunkin, Firmino, Mestre Djon
de Ti Pól, Noel Fortes, Ultra, Alfandega, Loja Dona Irene (hoje, Dona
Hirondina), os botes carregados de peixe escalado vindos das Gatas e os ensaios
do Carnaval no quintalão da Ultra. Anos depois, o sentimento era igual, mas a
realidade tinha mudado completamente. Na ilha da Boa Vista, a terceira em
dimensão no conjunto do arquipélago, fervilhava a nova era, a dos andaimes e a das
grandes construções, a da procura e das migrações, a do aumento
populacional, a da edificação da futura cidade de Sal Rei. Além, um pouco
para interior a Ribeira do Rabil, a mais virgem bacia hidrográfica das ilhas, o casamento das covas com as sementes, anuído pela gota-gota nas parcelas agrícolas, era oiro sobre o índigo, as grandes obras em curso, o Aeroporto
Internacional do Rabil, de amplo tapete basáltico listrado de branco, era a porta
de entrada para os visitantes, os hotéis de grande porte eram, adentro da
perspectiva de valorização e revitalização da ilha, acréscimos formidáveis.
Vislumbrava-se um futuro promissor, onde o revigoramento das tradições culturais da ilha,
acções de redescoberta dos bens culturais e patrimoniais, trunfos fortes a
serem trabalhados e exibidos aos forasteiros, àqueles interessados num turismo
pacífico, da busca de informações, do conhecimento da história, das figuras
destacadas, dos lugares com nome, das curiosidades locais, dos costumes, enfim da
identidade de um povo, como disse antes, que fez das dunas o
cavalo de esperança e da aridez o bordão do sustento.
Boavista está-se desenhando como uma forte região de Rota
Turística, mas, para isso acontecer de forma equilibrada e rentável, o poder
local terá de ter muita lucidez, muita capacidade de trabalho e de gente
capacitada para vislumbrar caminhos a seguir, o que obriga a uma acção inteligente nunca a reboque das modas copiadas para satisfazer pressões e interesses políticos
imediatos em detrimento da avaliação correcta de cada projecto e de cada medida
a implementar-se. Fala-se em todo o lado: temos potencialidades. Mas a questão
é como transformá-las em ofertas e produtos de consumo de qualidade. Turismo
não é banhos de mar e pisar praias arenosas e limpas. É antes um fenómeno que gera
em si um vaivém de gente de latitudes e culturas diversificadas, de diferentes
modos de falar, de estar e de actuar, com aspectos positivos e negativos a
impender sobre a realidade física e humana da localidade onde é exercida. Importa
reflectir sobre o que tem interesse para vida dos naturais, numa palavra que
ganhos de futuro. Muitos vêm no turismo uma espécie de prancha de redenção para
muitas das actividades artesanais moribundas, porém, outros pretendem apresentar artefactos imitados como sendo escultura nacional para o consumo dos visitantes.
Que ofertas devem ser trabalhadas para contrapor este
estado de coisas?
Agendado estão a preservação dos objectos, do património
construído, da cultura urbana, da cultura rural, das artes e dos ofícios
tradicionais e um conjunto de coisas, mas não há orçamento, se ele existe desaparece
em acções demagógicas do chamado apoio social, enquanto os criadores das artes sofrem do desgaste e da perca do entusiasmo.
A criação do ambiente favorável através de afectação de
recursos, medidas legais e administrativas, acções de formação e de promoção
das artes é obrigação constitucional, é um direito dos criadores, é obrigação e
não favor ou favorecimentos. O papel do sector público e do privado na promoção
do turismo, deve ser o mesmo na promoção e protecção das artes e dos seus
criadores; a contribuição da comunidade local no desenvolvimento do turismo
deve ser a mesma devida à cultura; o bom turismo, os impactes sócio cultural deste,
o turismo como agente de mudança sociocultural, os impactes culturais do
turismo, o desenvolvimento do turismo cultural, são matérias que estão no
âmbito do achismo, ficando por descortinar o que é relevante e como encaminhá-lo.
As equipas camarárias, todas elas, tinham de deslaçar da apatia e lançarem-se na criação
de ideias motivadoras dos seus munícipes, na criação de redes de promoção e de divulgação
da imagem social das localidades, na equiponderação das valências em resultado das
transformações que vão tendo lugar, para melhor poderem sugerir caminhos
a seguir.
Valeu muito a estada na ilha pedra três do triângulo
da minha existência.
À Yléh do deserto de Viana um beijo do peregrino.
Sabiam que arrabil é nome da antiga rabeca
pastoril de origem árabe.