terça-feira, 16 de janeiro de 2018

ORATÓRIA ACADÉMICA


COMUNICAÇÃO DO ACADÉMICO CARLOS ALBERTO BARBOSA NA MESA REDONDA LITERATURA, EDUCAÇÃO E CULTURA ENTRE IRMÃOS – CABO VERDE E O BRASIL - PRAIA 16 DE JANEIRO DE 2018 AUDITÓRIO DA UNICV

TEMA: O LUGAR DA LITERATURA NO CABO VERDE CONTEMPORÂNEO
                                  
Avaliar um tema desta importância não é incumbência de um pastor de estrelas-músico-compositor que apenas sabe observar o tempo, o lugar das coisas, os factos e o proceder dos homens de uma forma geral. Participo nesta mesa redonda na qualidade de tomador de notas, de quem indaga na tentativa de obter respostas, de quem procura para satisfazer curiosidades. Sempre procurei saber se a comunicação produzida entre nós energizam-nos para pensar bem, para executar bem e produzir qualidade. O que trago são anotações colhidas no dia-dia deste cantochão, onde as mutações vem-se operando com grande rapidez não nos deixando tempo necessário para percepcionar bem e plasmar na memória o relevante e depurar os males advenientes das transmutações, o que nos obriga a um exercício de rápida adaptação ao presente, sem que o ontem se ache inteiramente amadurecido no intramuros da nossa percepção em toda a sua grandeza.

Vivemos, hoje, perante um mundo de dissolução de valores morais, um mundo de novas ideias e de novos conceitos, um mundo demais exigente e de atualizações constantes, um mundo em fuga para a frente, um mundo líquido onde a autoridade moral afunda-se cada vez mais, onde os ricos ficam mais ricos e os restantes segmentos da sociedade vão-se definhando até chegar a famílias sem tecto, a grupos humanos vivendo às portas da marginalidade. A badalada humanização do mundo jamais se concretizará da forma como estamos sendo levados por aqueles que detêm o poder de influenciar a realização ou a concretização do futuro melhor. De que lado do mundo ou do cosmos surgirá o mundo melhor se todas as manhãs a fome mata vozes do pedido de ajuda, se todas as tardes sonhos e esperanças de milhões de seres humanos esmoronam-se em todo o lado do planeta? Onde fica a defendida casa azul de todos para todos? A verdade é que não há deliberações adequadas e duradouras para atender o estado de coisas. A verdade é que o jogo de interesses e as encenações prevalecem sobre o verdadeiro propósito tantas vezes repetido. A verdade é que a solução não virá do divino, está na terra ao alcance dos homens e dos recursos existentes. Não haverá paz, justiça e progresso social, havendo excluídos e ignorados. Duvido que haja interesse efectivo em aproveitar bem os ensinamentos e os recursos disponíveis. Receio que se esteja a fazer avaliações sinceras, a equacionar sem impor, sem empurrar fatalmente os outros para aquilo que não devem ou que não podem fazer, atendendo a fase e as aptidões intelectuais e técnicas dos destinatários, sem manipular os que ainda lutam pela sobrevivência, os que ainda sofrem das desigualdades, ou ainda, os que querem ser tratados com respeito e com justiça.
Como alcançar a paz e a justiça havendo diálogo de moucos?
Como ajustar os ganhos e as percas se o capital humano é vítima de posturas e atitudes desumanizantes? Como gerar a confiança em ambiente de corrupção, de amiguismo, de nepotismo e de clientelismo politico? Como ganhar a vida digna na terra e não na eternidade?

Hoje em dia, todos somos confrontados com este tipo de questões. Somos todos levados na vela da mentira, da hipocrisia e da celeridade dos incidentes, como se os supostos “donos do destino dos homens” aspiram esvaziar o sentido do tempo, reduzir as espectativas do indivíduo a um toque na tela do telemóvel, como se aspiram esgotar a história, impondo modas e clichés nada feito com as ribeiras de origem de cada um nós, de cada comunidade e de cada povo. Diariamente, numa margem assistimos o acender de novos conflitos armados, presenciamos a destruição do ambiente, a desastres naturais nunca vistos, a morte de desnutridos, a horríveis acções terroristas, noutra margem exibem-nos mesa de acordos amigáveis, roteiros de paz, orçamentos avultados sem correspondência na prática etc., autênticos actos enfunados e prenhes de estratagemas para mascarar as desgraças dos outros, tudo orquestrado em nome de uma vida melhor para a humanidade, em nome da liberdade, da paz e da democracia, autentico exercício de branquear o negrume do mundo colorido de azul no qual encontramos inseridos.

Falando ao teor da comunicação – o lugar da literatura numa terra como a nossa – de populações prisioneiras do mar, digo, prisioneiras, porque ainda não se conseguiu fazer do mar a avenida natural de fluxos e de refluxos de benefícios integradores e geradores dos equilíbrios entre as ilhas, inadequações obstrutivas a um desenvolvimento coerente de resultados vantajosos. Esta situação obriga-nos a pensar em que país estamos nós. Que país temos. Se somos país moderno de uma sociedade moderna? Moderno em quê? Se sim de que forma usufruímos e nos inserimos na modernidade? Se estribarmos na propaganda dos rankings somos moderníssimos e especiais em África etc. o que não passa de enfermidade de uma inquietação requintada e absurda da novidade pela novidade, como se os outros não fazem ou não estejam a fazer melhor do que nós.

A meu ver modernos são os músicos, os artistas da tela, os escritores e os poetas, os idealistas e defensores de um mundo de homens plenos e livres, os artífices da palavra e emissários da benquerença, os que lavram a história da nossa vida, os cultores da alma e da história da nação, nós, sim, somos modernos porque vimos fazendo o que nos compete: sonhar e propor, compor e cantar o presente e o futuro, nós que elaboramos sempre inspirados no jardim da nossa sementeira, impelidos pela tenacidade do homem das ilhas, que ano sobre ano inventa o molhado que não tem, sem desânimo e sem temor. Dito isto, pergunto se os poderes instituídos estão, infalivelmente a produzir orientações esclarecidas e orçamentos suficientes para as necessidades vitais da nossa época, para acções que armam o conhecimento, a conscientização da sociedade para ela se apropriar da alma da história da nação? Se estão dando o suficiente pela construção de uma sociedade mais culta, menos cruel e mais progressista?

Sabemos que os pré-claridosos foram os primeiros costureiros do tecido literário das ilhas, tendo como padrão o ensino, a educação, a luta contra a fome e o abandono; que os claridosos foram os lavradores a fincar o ABC crioulo no chão das ilhas, cumprindo o desígnio de naturalização do conhecimento vazado em obras que ainda marcam a nossa existência; que os da certeza cientes do seu tempo e da missão que lhes competia deram teor aguerrido às páginas, agitando as grades do medo, acelerando o decurso da luta emancipadora do povo das ilhas; que os novíssimos embebidos nos ideais da emancipação defenderam o desembaraço das forças criadoras pela retomada do curso da história das letras cabo-verdianas portadoras do germe de uma literatura mais abrangente e diversificada, diria, uma literatura cidadã e emancipadora no pressuposto de se “criar outra terra dentro da própria terra” sonho premeditado, utopia realizável se formos capazes de criar ferramentas que visam ampliar a erudição, apropriar a realidade e exercitar mutações, de forjar o aparecimento do cidadão inteiro, ideais que perderam lugar no tric-trac do jogo sujo da polarização e do desnorte politico. A literatura pode ser a arma de combate e já o foi no passado. Ela deve assumir o desígnio de elevar o espírito colectivo da nação através dos autores nas suas novas formas de linguagem, invocando ambientes e visões, alegando, narrando intrigas e réplicas, apondo um pensamento realista, atuante e portador de caminhos. A autenticidade de uma literatura vale pelas intenções e atitudes, pela beleza, mas também daquela sabedoria que é feita de ideias capitais, velhas e sempre actuais no processo permanente de combate contra tudo o que possa travar a liberdade e progresso social e cultural do povo. Do meu ponto de vista necessitaremos deste tipo de literatura por um largo período de tempo, diria, décadas. Todos sabemos que saber escrever bem é pensar bem, que saber falar bem é uma escolha própria, mas, raciocinar bem é um problema social sobretudo numa terra como a nossa. Esta é a literatura que proponho.

Será que o modelo de pensamento actual (caso existe algum) nos ajuda a compreender nós mesmos e aumentar a auto-estima ou então estimular a produção artística de valor elevado?   
Será que a ideia de país “meio-africano e meio-europeu” de média renda nos ajuda a formatar uma literatura que interessa às escolas e às universidades?
Vimos coligindo obras impactantes de modo a favorecer o seu próprio desempenho ou há um certo cinismo na nossa cultura que ora diz uma coisa, ora diz outra coisa sobre o mesmo assunto?
Não estaremos perante um Cabo Verde díspar?
Um imaginário erigido em alicerces do achismo. Outro presente nos números estatísticos tomados do real que nos dão conta das condições em que os sistemas estão montados, das distorções existentes e situações estafantes por que passa uma larga faixa da população, faltando pão, não havendo equidade e o usufruto de uma vida decente etc. E o finalmente bazofo, vaidoso, gastador e assistido pela boa vontade dos doadores.
Nestas condições que opções de vida, que sentido da história, que pensamento e que literatura defender?
Que cultura e qual o papel dos criadores das artes no geral, que caminho seguir e como recuperarmo-nos da crescente alienação cultural?
Não são os pensadores e criadores da arte a descerem para encontrar interessados, mas sim os que enxergam, os ávidos do saber é que têm de subir até eles, até as suas obras, para comungarem das experiencias vividas e das visões futuristas contidas em suas criações. A criação do cidadão inteiro e a formação duma juventude ciente da sua condição de farol das mudanças a operarem-se na sociedade passa pela leitura, pelo saber, pelo conhecimento da sua própria condição de sujeito da transformação. Esta devia ser uma das funções da escrita e da literatura moderna em Cabo Verde, sabendo que uma obra é compilação de vivências e de saberes apurados. Ela é fonte, é arte, é património.

 Respondo, sem equívocos, que o lugar da literatura é no seu espaço natural conquistado há muitas décadas, no lugar, onde, ela se reconhece e se renova, onde ela cresce e frutifica sem padecimentos de qualquer ordem, sem mendigar amparos, um lugar de vida própria, um lugar na atenção dos poderes públicos, condição que devia e deve ser assumida pela estado todo o tempo, sem paternalismos, sem indeferimentos, devendo, o estado assumir o papel de defensor e de fautor da criação artística, sem distinção, ter o papel de advogado primeiro dos criadores de cultura. Afinal, Cabo Verde é único lugar no mundo, por via da cultura, a nação antecedeu o edifício de estado autónomo. Isto ficou claro em Mindelo no simpósio sobre o Cinquentenário da Revista Claridade – sob o signo da emancipação literária cabo-verdiana.  
Recentemente tomou posição na primeira página dos jornais nacionais e internacionais, por ocasião do Festival de Literatura “Morabeza”, recentemente realizado na Praia, importantes declarações de Sua Excelência o Senhor Presidente da Republica, o poeta Jorge Carlos Fonseca, do Exmo Senhor Primeiro Ministro, Dr. José Ulisses Correia e Silva, do Exmo Senhor Ministro da Cultura e das Industrias Criativas, o Sociólogo Abraão Vicente e do Exmo Presidente da Câmara da Praia, Dr. Óscar Santos, afirmações que auguro não tenham sido emotivas e casuais, mas, sim, exactas e sinceras que se cumpridas em toda linha estaríamos em condições de considerar que a Literatura no Cabo Verde Contemporâneo poderá reaver o lugar que lhe é devido na sociedade caboverdiana.
A terminar não posso deixar de, nesta hora académica, propiciado por este encontro, inclinar-me perante a lembrança do meu mentor, amigo, vizinho e figura cujo gesto e palavra duram no intramuros do meu espírito, o poeta Mário Fonseca, autor do incisivo poema “Se a Luz é Para Todos” e arquitecto da poética “Meu Pais é uma Música”. Peço desculpas se não fui académico. Agradeço a vossa atenção.



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RAPIZIUS

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