quarta-feira, 26 de abril de 2017

Depoimento



LANÇAMENTO DA ANTOLOGIA
CABO VERDE PROSA LITERÁRIA PÓS-INDEPENDÊNCIA
DEPOIMENTO
  
Caro confrade Jorge Carlos Fonseca, poeta e prestigiado Presidente da Republica, agradeço a aprovação da apresentação da obra - Cabo Verde Prosa Literária Pós – Independência - neste magnifico espaço – Sala Pequim da Presidência da Republica, bem como o programa do ciclo de leitura, gesto honroso, justamente na vizinhança do dia da celebração dos 110º aniversário do nascimento de um destacado patrono da nossa Academia de Letras – Baltazar Lopes da Silva.
 Daqui saúdo a produtiva cooperação com o Banco Interatlântico, instituição benemérito da nossa Academia de Letras, quem suportou por inteiro esta bela obra; louvo as organizadoras desta suculenta compilação de contos curtos: as Professoras Érica Antunes, Fátima Bettencourt e Simone Caputo Gomes,  membros da ACL, pela gentileza, agudeza de espirito e pela capacidade de realização deste belo exemplar em pouco tempo; Realço o belo trabalho da Acácia Editora, na pessoa do Sr. Joaquim Morais, pela minúcia e cuidados dispensados, pela qualidade e boa apresentação desta moderna coletânea de contos. O meu muito obrigado aos cooperadores e á ilustre assistência, sempre nossa seguidora, pela presença e estímulo.
 Permitam-me insinuar que recolher e compilar o melhor nunca foi simples, mas romper estorvos e fazer, é superar hesitações.
As organizadoras foram sensatas na preparação deste autêntico mostruário de novas letras, de novos mensageiros, de novos escultores do verbo, todos eles edificadores da cidadania operante (em crescimento) cujo talento e fantasia fazem-nos viajar pelo mundo e pela sociedade crioulos, mas também para fora dos limites da ilha, invocando ambientes e visões, alegando e narrando intrigas e réplicas, narrativas estas erigidas em marco colateral ao da claridade enraizado no regionalismo e no universalismo, como defendia o poeta e ensaísta Manuel Lopes ao evocar a problemática da literatura nos meios pequenos ou acanhados e nos meios grandes, sendo o marco de agora inserido no tablado global do mundo, distinto em rumo e modelo literários, sem que a pena nacional nascida do sal da terra, têmpera da trova, da poesia e da prosa ilhéus, perdesse emoção e vigor.
 Ao tempo da claridade, pouco parecia muito, ao invés, hoje, tempo das novas letras, vários são pouco, mesmo com a anulação dos limites que a criatividade de outrora se sujeitava, não obstante, editar, ainda é freio a superar. Porém, criar e produzir são tarefas que cabem aos escritores, vulgarizar é empresa das editoras nacionais e externas, mas zelar e conservar o património literário construído cabe, primeiro, aos autores e suas associações de classe, cumprindo ao estado defendê-lo e protege-lo através de medidas e de acções concretas, sabendo que as letras cabo-verdianas são os alicerces da nossa identidade e massa da caboverdianidade no mundo, como tal, devem, todo o tempo, estarem vivas nas escolas, nas universidades, nas livrarias, nas bibliotecas, para estudo e difusão, e também nas mãos dos leitores e traduzi-las em outros idiomas e coloca-las noutros espaços de leitura.
 Estamos perante uma colecção de textos em prosa que espelha o elevado interesse da Academia Cabo Verdiana de Letras em divulgar as criações dos autores nacionais, alguns bem conhecidos, outros, nem tanto, sendo, todos eles, obreiros de estilos e de contares do passar das ilhas, das gentes e dos esquemas de comportamento, reflectindo apegos, visualizações e ponderações, quiçá, revirares da vida, ciente da perpetuação dos seus nomes e das suas obras e ao mesmo tempo presenteá-las aos amantes do livro e da leitura onde quer que estejam.
 A presente Antologia, sem forçar o calendário, refere-se ao período aludido na capa do livro - Cabo Verde Prosa Literária Pós – Independência, e revela com prudência e audácia um percurso prolífico dos autores e das letras cabo-verdianos neste lapso de tempo. Trata-se de um projecto e de uma solicitação da ACL cujo labor foi confiado a um trio notável de cultoras referidas na portada desta comunicação, entidades de confirmada competência e dedicação na valorização e na difusão das letras nacionais, um debruçar aturado sobre prosa diversa de escritores vários, resultando neste bonito indicador do itinerário da palavra nos mais variados sentidos, acomodando iniciativas, crer e querer crioulos, ideando lugares que decerto amaríamos viver perenemente.
 Esta obra identifica um tempo portador de pactos, de retornos e de inícios, envolvendo quarenta e cinco títulos de outros tantos autores com os pés fincados no mesmo centro e de olhos postos nos graus da girante da bússola determinante da aventura crioula, proeza do “navio de pedra que busca o rumo sem poder encontrar-lo no seu lugar”, citando o eloquente poeta Gabriel Mariano, nau, hoje, transformada botão do clik portador de novos rumos e viagens, de pontes sobre o mar que rola novos sonhos, de mãos inventoras do molhado que não se tem, de cultura no corpo da comunicação, mas, também,  terreiro da reconstituição permanente do sujeito poético, cutelo, onde, os poetas e os escritores hasteiam o pendão identitário, abrigo, onde residem, renascem, transformam-se, criando episódios a partir da vida vivida e prenhes de caminhos vindouros.
Ilustres senhores situamo-nos no tempo das novas letras. 
Termino, dizendo, que ao alinhavar estas palavras uma incerteza bailava-me nos sentidos: será que a literatura pós-independência é deveras impactante e portadora da mesma força incitadora tal como a que antecede a este período?


segunda-feira, 24 de abril de 2017

País Em Fio Dental - Rapizius

PAIS EM FIO DENTAL 

A solução que ganhou está alta:
Os festivais não param e a mediocridade também
Vendeu-se em surdina toda a orla da Gamboa.
A obra de David Show está à espera de parceiros
Os TACV faliram de vez e não há como indemnizar
Não há regionalização por não se saber como
O Orçamento do Estado começou a não ter dinheiro
Os financiamentos externos só 2019 com a Europa a cair
Os europeus marimbam na supressão de vistos
Vão sair ministros do governo reduzido e competente
Vão entrar democratas para governar o vento
Há riscos graves com a isenção do IVA aos municípios
Não se empregou nem 0,00001% dos 45.000 prometidos
As mordomias da dimokransa continuam
Despartidarizar é fantasma escravocrata
A matança continua e a delinquência aumenta
O Blá-bla é desculpa para divertir os ignorantes
A reforma do estado é calça e camisa txapa-txapa
A ilha do Fogo caiu no bluff e San Filipi bira más sabi
Este ano o milho vai dar sem haver chuva
Este ano é o ano do grande início do ciclo do fim.


Loas ao Grogue

LOAS AO GROGUE

Viva o grogue. Honra e glória à bebida nacional. Hossana, trapiches, alambiques e bois. Odeio esta mania de gostarem do grogue às escondidas. Odeio as novas bebidas que não seja o grogue. Todas elas, incluindo o xarope. Para onde quer que se vá, não há outdoors a promover o grogue. É falta de patriotismo. Grogue é grogue, digo, cana é cana, quer dizer, grogue é cana. Grogue é beleza porque inspira. É perigo porque é transparente. O grogue em si é um bom governo.
O bom grogue não é para nos compreender, nem para nos ajudar, nem para nos fazer felizes. É para nos provocar. Tanto faz. É uma questão de azar ou de sorte. O grogue não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, mas para dentro da nossa gaiatice. O grogue ama o limite. Come o macho, a fêmea e o homossexual. Somos todos bêbados sem beber. Quando bebemos somos santos. A vida às vezes mata a vontade de viver e o grogue não, porque bebê-lo é uma conveniência à morte.
O grogue puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. É caule que nos alimenta. Tem tanto a ver com a vida de cada um de nós como a cachupa. É capa da bafa e faca na boca. É perfume é pistola líquida. O amor pelo grogue não se percebe. Não dá para perceber. O amor por ele é um estado de quem se sente vivinho da silva. O trapiche ama a cana em cio a desabar orgasmo. A desabar e a correr atrás da taberna. Cana é avião, é chão e cemitério. É sogra do garrafão e genro da garrafa e primo-irmão de primeiro grau do copo que por sua vez é compadre do balcão.
O grogue é sempre uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária, é bonita e não faz mal. Que se invente e se minta e se sonhe o que quiser. Grogue é amparo e poesia. É bilhete de viagem que pode matar, pode inspirar, pode dar e tirar vida, pode cortar o calor, pode combater o frio, pode curar, pode ajudar a lembrar, pode fazer esquecer, pode desiludir, pode desinibir, enfim pode levar o homem a ser homem, por muito desesperado que esteja.
Em última instância o grogue propicia uma boa noite conjugal, de serenata ou de guarda cabeça, ajuda a tra spésse y tra boka de morto.
O grogue é o símbolo mais vivo da global-caboverdianidade. É assunto para uma boa assembleia de magistrados, do governo, de deputados, de partidos, de quebrados, dos fofoqueiros e dos videntes do blu. O grogue é o parceiro mais democrático da república. Ele é constituição e direito humano. O grogue dura a vida inteira e a vida dura enquanto pode-se tomá-lo.
Grog é pa kenha ke sabê bibe-l. Cantou Luís Kabel.


domingo, 9 de abril de 2017

Rapizius - Eu, Espelho e Metafora


Caros e assíduos leitores da minha página

Esta é a última publicação RAPIZIUS, exercício de narrar em 500 Palavras. Devo esta aprendizagem ao Poeta Mario Fonseca, quem me indicou Edgar Poe e Virgílio Pires, mestres em Short Story e Corsino Fortes, poeta e narrador épico das ilhas, a me mostrar que escrever é exercitar a memória.


Eu, Espelho e Metáfora

Colocar-me “nun prit” diante do espelho era o exercício da semana. Esperei a hora adequada para o fazer. Duas da manhã, momento de todos na cama e de discreto silêncio. Logo à entrada, o aparador ostenta a bonita superfície polida do vidro há anos, onde, todos os dias, confiro o porte antes de sair. Já me posei vezes sem conta diante do espelho ora bailando, ora treinando os músculos, e nesta madrugada havia de ser calvo para repetir a experiência de Leonardo Da Vinci.
Antes do sério fiz umas caretas a gozar com o parceiro do lado oposto. Logo, pensei. Levantar a superfície da água e coloca-la no vidro é obra de louco. Só podia ser. Não sei se quem se olha no espelho vê tudo o que a imagem oferece.
Será que conferir a parecença diz tudo?
O espelho é minucioso. Sugere nós próprios. Portanto, ele é depositário de privacidades, ele é algo acesso que não se abre e nem se fecha. Se há alguma verdade neste mundo, ela é a nudez diante do espelho. Nascemos nus. A nudez fala-nos da pureza. Perdemo-la ao nascer e ao voltar não damos conta. A nudez do morto é a nudez da vida. Ela é também fornalha do amor que a lua-de-mel exercita até à exaustão. Sendo ela a expressão da verdade ditada pelo calor da pele e pelos vapores da alma, resumidamente, a nudez é nado-mundo em chamas.
Descrever a nudez é materializar a mente calva. As palavras é o movimentar dela. O mesmo se dá com a música. A pauta é movimento da alma no apogeu da sua nudez, sendo a nudez diante do espelho metáfora de um polígono em trânsito.
Nunca a nudez me pareceu estranha. Visito o meu corpo nu, sempre. Nunca perdeu virilidade. Nunca se aterrorizou de si próprio. Amo a nudez do meu corpo no palco do espelho, onde o completo afigura-se uma estátua de bronze erigida no centro de um reino. A nudez verdadeira é insubmissão, entre o começo e o fim de um gesto. Ela é uma espécie de princípio e fim do éden, tal como a viagem de Enoque ou o paraíso de Adão e Eva, onde o nu armou o pecado original e dilatou o prazer cárneo em todos os seres, sendo, por isso, tabu, algo impedido pela moral social, porque atribuído a loucos. A nudez pública é imoralidade. Assim diz a norma. Mas a nudez esmerada é arte, é símbolo da carnalidade explorada e mercantilizada pelos Mídias na suposição de que se trata da prática da liberdade de expressão corporal, coisa atendível em sociedades abertas, que, no entanto, nas acanhadas ou pequenas é ofensiva, porque conotada com putaria. Do ponto de vista artístico a nudez é metáfora, é insubmissão e sensualidade e código do erotismo. Tanto o nu do espelho quanto a nudez de um corpo é dom de desafiar.
Nada é mais sincero do que a nudez da opinião reflectida em forma de Rapízius.

sábado, 8 de abril de 2017

Nossa Casa em Assomada


NOSSA CASA EM ASSOMADA

A nossa casa era espaçosa e tinha um quintal grande. Ao fundo a capoeira e o chiqueiro. De um lado a despensa de chão empedrado que guardava tambores de mantimento, garrafões de sementes, latas de gordura, tina de salmoura, arranjos de azágua e sacos de mancarra. Do outro lado a cozinha de terra batida, igualmente ampla, tendo ao centro fogões de três pedras, um para caldeirão grande e outro para panela pequena, além do de barro a carvão para o bule e esturrar o louro. Na cozinha de uma parede á outra, justo no ponto da subida do fumo da lenha, havia o travessão de pau de carrapato para fumar enchidos de porco. Temia entrar na cozinha á noite por causa do enegrecido das paredes e da coberta, não com a despensa. A aventura de forçar a porta para entrar e trazer punhados de mancarra para o quarto de dormir bania toda a espécie de medo. Mancarra com açúcar era sustento que tinha fama de desenvolver os cavalos, torna-los fortes e velozes para as corridas, qualidades desejadas pelos jovens para poderem competir com colegas de escola e atacar a disputada da bola. Crendo nesta fama eu comia às escondidas mancarra com açúcar no silêncio da noite, antes de dormir. Nesse dia a lata de graxa onde eu punha o açúcar estava vazia. Com pés de rato saí à procura do boião de vidro com açúcar. A guarda comida estava fechada a chave. Socorri-me duma faca. Não se encontrava ali o recipiente. Fiquei atrapalhado. À luzinha do candeeiro, aproximei-me da porta do quarto do avô, na mesinha de cabeceira, ao lado do bule de chá e das chávenas estava o boião. Pensei duas vezes. Na vez de três, decidi trazer o açúcar. Agachado como um felino ziguezagueei até chegar perto do lugar. Ao esticar a mão para alcançar o vidro, caiu a colher, o avô acordou. Ao pôr os pés no chão, colocou-os em cima de mim. O grito acordou a casa inteira. Meu pai compareceu de manduco numa mão e lanterna noutra mão. Já o problema era outro. Menino desmaiado no chão. Água de pote na cabeça fê-lo vir a si àquela hora da noite. Instado a relatar o que tinha acontecido, o menino começou a contar: senti um barulho no quintal, espreitei pela janela, um vulto vinha da cozinha em direcção ao quartinho, refugiei-me na sala de jantar, armei-me duma faca, ao recuar vi a guarda comida aberta, fugindo á perseguição escondi-me no quarto do avô, senti algo em cima de mim, gritei. Nada mais ouvi. Serenado o ambiente, nada obstou que os despertados dormissem como se nada tivesse acontecido. Amanheceu e cada um pegou nos seus afazeres até o cair da tarde. A avó era quem dava conta de tudo o que se passava em casa. Á hora de esturrar o louro chamava sempre o netinho para se divertirem com passagens. Ela começou a contar do rato que comia mancarra com açúcar para ser robusto como o cão.   
   

sexta-feira, 7 de abril de 2017

DIVAGAÇÕES


DIVAGAÇÕES

Era no pendon di banana, tronco da bananeira, que os meninos do meu tempo aprendiam a nadar no tanque de rega da Boa Entrada. Água em cinco escadas era a marcação certa para aprender sem perigo de afogamento. Com os pés a tocar o fundo a água ficava pelos ombros. Da Ponta de Maria Simoa, morada de corvos, via-se o tanque de Caniss na Ribeira da Boa Entrada, ponto de controlo da altura da água. Vendo corvos cruzarem sobre nossas cabeças esconjurávamos para ninguém morrer afogado, nem ser apanhado pelo guarda da propriedade. Banhar no tanque da Boa Entra era ritual de segunda-feira, dia em que os pais deslocavam-se para a feira no mercado dos Orgãos. Cada um de nós tomava um pendon, tronco cortado e deixado na horta. Dos talos desta planta, após secagem, faziam-se vários utensílios, assim como, albardas para burros e mulas e cabazes de transporte de produtos do lugar ou farnel para as fainas agrícolas, cordas, rodilhos e esteiras para a cama ou tapetado para actos funerários cuja reza durava dias, tradição de outrora. Hoje em dia, esteira fincada simboliza casa enlutada.
É aliciante recordar como é que as coisas, os lugares, as plantas, os animais, as árvores, o céu e os fantasmas que faziam parte do nosso imaginário mudaram com o tempo e com a erudição. Tais artefactos que faziam parte da vida campesina de outrora, que moldavam a forma de vida da comunidade, que influenciavam, regiam a sua forma de estar e de crer, bem como o proceder das pessoas, hoje, nem peças de museu são, porque o cabo-verdiano não aprendeu a preservar o passado. Passado para ele é carro-bedjo. O que passou é monturo e não legado. Todo o começante ao chegar o poder brada como o corvo “ é a primeira vez que…”. Não havendo legado, o começante acha os três-bintén e gaba-se da sorte de os achar debaixo da ignorância dos outros, atitude que só pode ser comparada a de um corvo. 
No meu tempo de menino a pessoa comparada a um corvo ralhava-se e refilava a ponto de convidar o acusante à pancada. Hoje, não! Ser-se corvo é normal. Não é depreciativo. O corvo divaga e acha-se. Dizia-se que por mais comida metesse dentro não fartava porque da goela à cloaca é linha única. Passa milho e saía praga. Os espantalhos que tomavam conta dos sítios semeados de nada serviam para contrariar estes esfaimados, descarados, daninhos e superlotados de má-fé, estes agoirentos, praguejadores e nojentos que o meu avô dizia ser filho do pecado razão pela qual, até hoje, Noé o espera regressar á arca. Corvo é vítima da praga da sua mãe, daí o corvejar… quatro-quatro… igual ao número de alças do caixão ou as quatro pontas do esquife apoiados sobre os ombros dos que levavam o morto para o cemitério.
Se os corvos jamais sabem de si, porém, a bananeira frutifica, dá broto novo e deixa o pendão para o artesão e para os miúdos aprenderem a nadar.

AO POETA VADINHO VELHINHO


DA MARGINALIDADE AO POETA NÃO ANTOLOGIADO


 A Valentinuos Velhinho, poeta de ruas correndo noites de insónia

é insosso a escrita que escrevo
vida esbatida em versos rengos 
murmúrios das horas extintas
viagens a lugares desistidos.

broncos os versos que escrevo
papel árido de coisas remoendo
conjuros e sentenças excêntricas 
devaneios dum gaiato varrido.

tronco os poemas que assevero 
fronte crespa de um jumento  
marcha grotesca e impudências   
de quem finge cultivar lírios.

atenção! neles há face e verbo 
que cada um de nós conhece
há gaveta onde mora a paciência  
o infinito a janela e os grilos. 

cuidado! há o pastor austero 
que a galardões não concorre   
há calma suficiente e sapiência    
de jamais vergar ante o elogio.


RAPIZIUS - DIVAGAÇÕES


DIVAGAÇÕES

Estou convicto de que os galos nos querem roubar a verdade para nos impingir corvos por frangos, estou convencido do ajuste de contas entre o mar e o vento obrigados até a raiz dos tomates da Maria, seja santa, seja prostituta, seja praia, seja calhau, seja cristã, seja pagã, todos à beira mar plantados, mar de betão, mar de craques aldrabões de coqueiros inexistentes, de anfíbios a divagar buscando pousos sensatos, mar de remos partidos e botes afundados, mar do tempo de triste memória, mar roubado, mar de protagonistas e capitães de mar e costa, mar de tubarões desempregados e tainhas em stand by, mar engajado em ser lagoa europeia, mar de revisionistas e de rabidantes, mar de despesas, de injustiças, de mentiras, de promessas, de falamentos, mar vazio de conteúdo, enfim mar de cagâ.
Oh! Tanto mar para ver e vencer. Algos e algas não fiquem, pois, à espera que eu me lamente do mar merecido, não contem comigo para a impreterível denúncia nem tão pouco para manifestações, reivindicações e novas formas de luta.
Para já, o mar tem cara de festa, de música de entretenimento, tem cara de amigo, tem cara de caminhos afundados na esperança residente no despenhadeiro da vida, todas estas caras juntas dariam para Achada Mato e Ponta d’Água rechearem-se de arranha-céus, daria para a beira mar das ilhas beneficiarem do banho dos turistas, daria para o regresso definitivo da diáspora, daria, ainda, para solucionar a terra e as gentes.
Há a necessidade de mostrar que sem o espírito deste mar éramos todos calhaus pálidos sem liberdade de pensar, de cantar, de falar, de escrever, de sair, ir e vir, gozar a vida, incluindo saber o que querer e o que querer ser e ter. Virá a indústria de criar a felicidade para todos. Se demorar, não me perguntem.
Porque haveria eu de me sentir culpado da não felicidade prometida?
Não plantei os outdoors, não animei a festa, não contratei artistas, não ajuntei gente, não menti e nem prometi resolver nada.
Estou de bem comigo mesmo. Sou igual a centenas de olhares diante do mar à espera do sul da Europa desembarcar.
Nem desertor nem herói. Apenas, divagador.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Rapizius - Lagrimas de Crocodilo

LÁGRIMAS DE CROCODILO

O encontro do José Maria Neves, primeiro-ministro de Cabo Verde, tido há bem pouco tempo com os jovens pertencentes aos gangs dos controversos bairros da capital deu pastagem para muita chacota. Os opositores fartaram-se de blasfemar, os entendidos, alguns, puseram-se em cima do muro, os duvidosos, calados à espera do desfecho da balbúrdia gerada pelo encontro.  
Os taguis que deram a cara mostraram-se "arrependidos", do que fizeram e das consequências daí sobrevindas. Outros com ar de pecadores rodopiavam em palavras sem saberem explicar-se convenientemente qual era o superior interesse dos gangs, do porquê da sua formação e para que prestação.
Dos sociólogos e outros ólogos ouviram-se coisas que os seus livros de formação lhes ensinaram sobre os fenómenos sociais deste género: as doenças sociais em que a violência está inserida, as frustrações, famílias desestruturadas, crise de valores, diagnósticos que todos sabem encontrar cujas soluções ninguém tem por onde começar, justamente porque a autoridade mergulhou-se no paternalismo e no populismo. Proclama-se Tolerância Zero e cada vez mais a acção zera-se no conformismo e na inaptidão das autoridades.

Sigam a conversa tida com um tagui:

Bk. Olá Roy! Como vai a vida? Já te recenseaste?
R. - Sou registado. Já votei algumas vezes.
Bk. Foste ver teu nome no novo caderno?
R. - Não é preciso. Está lá. Só que desta vez vocês têm de me mudar de zona para se evitar o batinbora com os outros. Quero manter-me na minha zona. Sabes a história de marcação de zona.
Bk. Porquê zona marcada?
R. - Ein! Foi uma coisa que veio assim de repente e os rapazes resolveram proteger a sua morada.
Bk. Outros quem?
R. - Dos mais abusados. Abusos há muitos. Os rapazes de outros lugares fazem paródia na zona e abusam de nós. Tomam e não pagam e arranjam confusão, para depois zarparem. Os daqui reagem. Ou não? As coisas começaram do nada. Brigas e desforras. Pelo menos aqui na zona foi assim que começou. Mas há o grupo do fumo. Eles estão sempre juntos para se defenderem também dos que chibam. Cada um tem os seus motivos. Ou não? Os de uma zona não roubam onde moram. Vão para outro lado. Mas nossa zona esta marcada e vigiada pelos que ali moram, para se evitar a invasão.  
Bk. Tu Dony. A tua zona?
D. - A minha zona é calma. A confusão aparece quando algum flaxa por causa da bebida e do fumo. Eu tiro uns fumos para me aliviar. Não é todos os dias. Quando vou levo o trunfo e dou um coche a cada amigo. Rapazes e raparigas de cá dão o alívio para acalmarem o dia. Tudo é na mesma. Nada está a mudar para nós. Não temos nada para fazer entra dia sai dia.
Bk. Viram essa coisa de zona nos filmes ou inventaram isso.
R. - Acho que os verdadeiros tagui sim. Apanham coisas nos filmes. Os filmes americanos mostram a marcação de zona, com grupos de um lado e de outro, combates e outras coisas que fazem para levarem a vida e manter a zona controlada. Vivem como irmãos. Se um sofre todos sofrem e se um tem todos têm. Tás a ver. Não é só filme. É a realidade da vida. Hoje o mundo virou uma coisa só, mas ao mesmo tempo dividido. Ou não? O que dá num sítio longe daqui a gente sabe logo. Tás a ver. É como se tivesse dado aqui. Sentimos. A vida virou uma coisa só em todo o lado. Tás a ver. Os taguis de outras terras têm dinheiro, vivem melhor que nós. Por isso esta influência de tentar alguma coisa, mas de forma diferente, à nossa maneira. De acordo com o que há na terra. Ou não?
Bk. Conheces todos os grupos de taguis?
R. - Não. Conhecer pessoalmente não. Mas eu sei que há Wé Sá (West Side), Sévi Sôdja (Save Soldier), Blé Stá (Black Style), Boss ( Boston), Caixa Baixa, Play Boy, Paralelo, Boca Forno, The Black, Sévi Uaini (Save Wine). Há mais. Esses nomes é que rodam mais entre a malta.
Bk. E kassubódy, agressões e mortes. Como é que é?
R. - Um tagui sozinho não faz mal a ninguém. Juntos, sim. Há um que manda. Quem vai ao caso não é o mais valente. É o sôdja (soldier/soldado). Os outros ficam de olho para no caso de a coisa complicar, quer dizer se a pessoa reagir. Um verdadeiro tagui não pode ser caçado nem pela policia.
Posto isto, fico na minha. Há uma opção quase deliberada para auto marginalização que leva à frustração e ao exercício da desordem, fumo ou bebida, discussão e agressão nos lares, nos bairros e na sociedade, espaços confinados ao feio e longe do harmonioso e da serenidade.
Por mais que a sociedade chore saem lágrimas de crocodilo, lágrimas que não significam sofrimento, porque fingimento, promessas não cumpridas, populismo e crise de responsabilidade não choram, mas sim geram frustração e esta descontentamento e este reação violenta.
BK

quarta-feira, 5 de abril de 2017

RAPIZIUS - O HINO


O HINO

"Canta, irmão
Canta, meu irmão
Que a liberdade é hino e o homem a certeza.
Com dignidade, enterra a semente no pó da ilha nua;
No despenhadeiro da vida a esperança é do tamanho do mar que nos abraça, sentinela de mares e ventos.
Perseverante entre estrelas e o Atlântico entoa o cântico da liberdade.
Canta, irmão
Canta, meu irmão que a liberdade é hino e o homem a certeza!”

Esta é a letra do Hino Nacional da Republica de Cabo Verde, portanto, o cântico da soberania deste povo e desta nação. É letra de um Hino. É letra que não devia ser nímia nem abreviada quanto o é. É uma letra de rotura. É uma letra que exclui e omite a chama da razão sentinte da nação, leia-se, nação lutadora e ganhadora, nação de história e de cultura. A ideia presente no hino é apenas a de exortar o irmão, (vaga fraternidade) para cantar (festejar) porque a liberdade é hino e homem a certeza, como se a liberdade tivesse sido achada ou dada e nunca conquistada a pulso, como se a liberdade não tivesse assento no braseiro da luta secular do povo das ilhas para a conquista da sua soberania e liberdade cidadã.
A letra do hino (feito à pressa) é de claro rompimento com a história da luta de libertação nacional, é de claro apagamento de uma realidade, não se escudando e nem trespassando a luta do povo das ilhas pela sua emancipação, pela independência e soberania nacional. É um texto que não evoca o sentimento pátrio, ficando-se pelo apelo ao irmão para cantar a liberdade, porque a liberdade é hino e o homem a certeza (de quê e para quê?).
O irmão que se pede para cantar (festejar), não pressupõe fraternidade e solidariedade; o homem a que se diz homem-certeza, é um ser peregrino e jamais o que verteu suor e sangue, que deu sua vida à luta pela independência. É, portanto, um texto sem manifesto patriotismo, sem apelo ao âmago do homem cabo-verdiano para construir o presente, nem para conquistar o futuro. Há canções espalhadas pelas ilhas de grande valor simbólico e de grande sentimento patriótico.
No desejo de se conferir dignidade ao trabalho e ao progresso, (enterra a semente no pó da ilha nua) mostra-se o despenhadeiro da vida, o mesmo que “precipício da vida” como residência da esperança que é do tamanho do mar que nos abraça. Para depois, se referir “entre estrelas e o Atlântico” espaço e lugar de ninguém, para onde o irmão entoa o cântico da liberdade com os pés na ilha nua, (nua despida de vida) como se o passado de revoltas, de protestos, de abandono, de fomes, de mortes, de perseguição, de prisões acontecesse na ilha nua, despovoada de homens e de mulheres; como se a luta de libertação das ilhas não tivesse começos, resistências, momentos de sacrifício e de glória, como se o caminho de novos caminhos não tivesse fundamento na cultura e na história das ilhas, como se a construção da liberdade de criar liberdades brotou com o hino cujo apelo maior é de o homem-irmão cantar o despenhadeiro da vida e a convocar estrelas e o Atlântico a testemunharem a peregrinação de um povo pelas incertezas do mundo.  
Doce guerra de Antero Simas, Torrão de meu de Nhelas Spencer e 5 de Julho de Manuel de Novas entre outras significativas canções às ilhas são hinos à imortalidade da alma Verdiana.
Texto de 30.9.2010


RAPIZIUS

                                                                                                         MINHAS AMIZADES COM DIAHO ...