A RUA ONDE TUDO
PODIA ACONTECER
Havia uma rua, de seu nome verdadeiro, Rua Capitão de Infantaria Eng.º António Monserrate Lencastre de Sousa Pinto d’Almeida, cuja etiqueta era mais longa do que a ruazinha do bairro novo mandado construir pelo Governador por ocasião dos quinhentos anos do achamento da Ilha. Eram estas as origens da rua que o povo, ignorando o laureado e seus feitos heróicos, cascou o nome Rua Pandonga.
Nho Pango marido de Nha Pandonga era jardineiro do palácio do governador. Feita a distribuição das casas coube ao assalariado a moradia que ficava á esquina onde a placa foi colocada. As laterais de duas janelinhas davam para um descampado, onde mais casas vinham sendo construídas, restando um largosinho onde os meninos jogavam à bola. Com a reforma, o jardineiro viu o seu salário reduzir-se bastante e, para ajudar a casa, sua mulher arrumou um tabuleiro de venda e ao lado uma tigela com pastéis de milho recheiado.
Com o tempo, não podendo ela continuar mais no ofício por causa da idade avançada, herdou-lhe a filha, Donguinha Preta. Inovando, a jovem vendedeira montou um caixote feito mesa, onde punha o negócio, ladeado por quatro moxo (banquinhos de madeira), para os clientes. De pastéis, passou a fritar também miudezas de porco, passando a vender mais, sabido que bebida puxava pelo bafíu e vice-versa. A moça tinha um espírito tolerante, coisa que agradava muito os que iam para ali desenfadar às tardinhas.
Às dezoito horas abria-se a esquina e fechava-se não havendo clientela. Era assim todos os dias. Ali, todos tinham uma cena para contar. Era um autêntico palco de verdade popular, verdades vividas. Os que se estonteavam encostavam-se à parede a falar corrido. Os despertos davam-se aos copos. Dizia-se de um fulano que seguia em direcção á casa, após ter deixado o lugar, a meio caminho, começou a bracejar como se estivesse em puxa-puxa com algo invisível. Outro, findo o último pingo, começou a espernear e a espumar pela boca como se tivesse ingerido detergente. Outro ainda, apenas o cheiro do copo, fê-lo cair seco russo, nem água por cima o acordou da calema que o apanhou. Não obstante o que vinha acontecendo, mais, e mais clientes visitavam a esquina. Ali a bebida era bem servida e a bafa baratinha. Nho Lixo, cliente assíduo, quando puxado nela, falava sempre duma coisa redonda cheia de luzes que aparecia no largo com gente em fato-macaco laranja a inspeccionar o local. Até o velho Nho Pango, pai da rapariga, contava ter visto homens fardados de branco, armados, seguindo no meio do breu, desaparecendo na rua detrás.
Enfim, muitas estórias davam conta de cenas incríveis que o lugar inspirava e onde tudo podia calhar, contudo, desconheciam o paradeiro dos cães que nas redondezas latiam noite dentro até de madrugada.
A vendedeira que sabia de tudo, diariamente, mal o sol se punha, arrumava a esquina para acolher a clientela. (Conto curto do Livro - Descantes d'nha Ribeira - não publicado)